Perguntas sem respostas

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Breves relatos sobre a história do leão Nero, o palhaço Puppy e a octogenária Catarina

Cecília (2003-2018)
Cecília levantou-se mais cedo naquela manhã domingo. Havia esquecido o cordão de ouro na casa de Maria Júlia e precisava buscá-lo antes que a mãe desse falta da valiosa jóia. O colar foi presente de aniversário da falecida avó Adélia quando Cecília completara quinze anos e trazia aquela velha história de tradição familiar. "Fora da sua bisavó depois passara a sua avó e que agora passava para neta". Coisa de uma geração de apegados a bens materiais, pois o colar era de ouro legítimo e valia uma boa nota. O resto era conversa fiada porque aquela baboseira de valor sentimental realmente não procedia.
Cecília pegou a bicicleta do irmão Miguel por volta das seis e vinte da manhã. Aquele foi o último ano em que o horário de verão fora obrigatório e quando a adolescente saiu de casa o dia ainda não havia amanhecido e a escuridão tomava conta da paisagem. Cecília pedalava rapidamente, assim chegaria mais rápido à casa de Maria Júlia e a mãe nem ficaria sabendo da saída da filha.
Cecília jamais chegou à casa de Maria Júlia.


Mariana (2005-2018)
A celebração da missa era um laivo de pureza naquele mundo lascivo e desregrado. Mas para a adolescente Mariana era entediante. A menina ainda não trazia dentro de si os vícios de uma mulher adulta. Era pura e virgem e não enxergava qualquer beleza no grisalho e viril padre Julian, com quem a mãe tanto sonhava. Para a menina, o padre era somente um homem simpático e com uma linda voz. Nunca suspirara pela voz rouca do religioso e nunca se deitara sonhando com o padre.
Mas ela só tinha treze anos.
Assim que terminou a missa, Mariana logo quis ir embora para assistir Stranger Things, uma série da Netflix que fazia o maior sucesso entre as adolescentes no ano de 2018. A série estava em sua primeira temporada e a menina não perdia um único capítulo e só tivera que parar naquele dia porque a mãe a intimara a comparecer à missa, caso contrário, ela ficaria sem internet durante todo o mês. Depois das ameaças, o jeito foi se enfiar em uma velha calça jeans e partir resignada ao lado da mãe. Rezando para aquele suplício terminar logo e ela possa voltar para se divertir com Mike e seus amigos.
Na porta da igreja a mãe pegara-se de conversas com o padre Julian e um idoso ajudante de missas, conhecido como Marcelinho sacristão. Mariana pediu autorização à mãe para que ela fosse à frente. A mãe permitiu, não sem antes adverti-la a olhar para todos os lados. Mariana foi embora e o padre Julian pediu licença para se juntar a outro grupo de fofoqueiras que o requisitava há horas.
Já no sossego de seu quarto, Mariana escutou a gata Serafina arranhando a porta querendo entrar em casa. A menina se levantou para buscar sua companheira de quarto. Aproveitaria também para escovar os dentes, pois trazia na boca, o gosto do vinho artesanal, produzido pela casa paroquial. A bebida tinha gosto de sangue e sentia o estômago embrulhado. Ela bebera do vinho diretamente do cálice de padre Julian, assim que recebera a hóstia das mãos de Marcelinho durante a comunhão. De repente uma mão forte na escuridão da sala a agarrou com força a impedindo de chegar até a porta.
Mariana nunca mais assistiria a nenhum capítulo de Stranger Things. Sob os lençóis da Tinker Bell o notebook ficaria pausado para sempre. Assim como a garota havia deixado.
Do lado de fora da casa, Serafina jazia decapitada.

Bem vinda seja a vossa morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora