O pastor de gado X pastor de tropas

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"Tens de ser tu a fazer isso, não chamarás muita atenção. E se der alguma confusão, nós iremos cuidar da tua família e cuidaremos para que tu não sejas responsabilizado pela confusão. Lembra-te que é pelo teu país que estás a fazer isto e que nada mais importa do que a segurança do teu estado." - Até o dia em que o corpulento e prepotente senhor ministro veio até a minha sala - ao fim do corredor, ao lado dos cagatórios e mijatórios que exalavam o cheiro dos excrementos ministeriais - envergando sua farda que a tropa lhe cedera, nunca havia recebido uma visita tão importante na sala que me foi atribuída a fazer o trabalho de analista para o ministério da defesa, sala onde eu analisava pretéritos e presentes a fim de prever um atentado futuro à terra que Da Gama desembrulhou.

Nesse dia, o sol estava quase dilatando, quem me confessou foram os feixes que me invadiam a sala pela minúscula janela quase beijando o tecto e o calor atencioso do sol - tudo isso aconteceu ao fim do dia, quando a o sol começava a ceder o palco à lua. Muita coisa era estranha naquele dia: O ministro da defesa nacional  andava sem sua escolta e me confidenciava informações sobre a nação que se suponha não ser ele a me dizer. Entrou na sala de porta aberta, olhou para mim esperando que eu lhe concedesse apalpadas ao ego em jeito de honras militares anunciando a sua entrada. Nada disso recebeu, eu não sou militar, cheguei aqui por conta do recrutamento de quadros civis para exercício no ministério, eu sou um jornalista, por isso me pus simplesmente de pé.

- Saudações! - disse o ministro, projectando o bafo de tabaco e  a rouquidão de sua voz.
- Saudações, sua excelência min... - Interrompeu-me a homenagem e disse:
- Chama-me apenas Eutanásio - disse, o ministro.

Violou as formalidades e seus direitos e se pôs do outro lado da mesa como que um entrevistado. Disse que o assunto era sério, tirou a boina que lhe escondia a cabeça baldia e sugeriu que eu parasse com tudo o que estava a fazer (na altura, eu analisava documentos sobre os ataques de homens armados a população ao norte do país com a cabeça aos pés da Tanzânia). Isso foi muito chocante: o que seria mais importante que o trabalho que por mim era feito a fim de acabar com os ataques ao povo nortenho?

Não tardou, sequer esperou que eu me respondesse a indagação e colocou na mesa o assunto que eu deveria pôr em análise. Os papéis que Eutanásio deixou na minha mesa não tinham nenhum carácter ministerial, ou, pelo menos, não eram do ministério da defesa. Ele estava muito preocupado e me pôs a analisar, imediatamente, os documentos que atentavam ao estado. Peguei nos papéis, tirei o pára-brisa da testa para a vista e enterrei o miolo nos documentos que faziam escorrer suor nas pernas do majestoso ministro.

Tratava-se de crónicas escritas por um jovem professor do distrito de Moamba.

- Então, o que achas disto? - perguntou-me enquanto o líquido salubre lhe deslizava a face por conta do calor intenso.
- Sua excelência, aliás, Eutanásio, é muito bom saber que gosta de crónicas. Corrijo: o teu gosto se exarceba ao ponto de me interromper um trabalho muito importante. Não vi nada que supões que eu devesse ver.
- Olha bem, olha para o que ele diz sobre a política, sobre a pobreza. Isso parece projecção de um ataque ao país! - o ministro estava todo suado mas não cansado de me esfregar na cara a sua excelentíssima ignorância.
- Então, se acha tudo isso, para que precisa de mim? Por que não manda um efectivo para Moamba?

- Já o fizemos. - disparou.
- Então prontos. - Concluí.
- Só que quando chegámos lá, ele se apercebeu da nossa presença. O desespero lhe subiu à mente, montou-se no gado que pastoreava, pôs-se em fuga em direcção ao sol e desapareceu.

Essa é a coisa mais interessante que já me passou pela secretária. Pus-me a rir loucamente do efectivo militar que não deteve um pastor de gado e letras de Corrumane. Era de me matar de rir! Ri-me tanto até que, no exercício das funções que me eram conferidas, decidi aplicar uma eutanásia à conversa e expulsei o pastor de tropas da minha minúscula sala. De seguida, liguei para o Ismael e lhe estendi a vénia pela partida que pregou ao ministério da defesa e redigi a carta de pedido demissão.

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