São essas as características gerais da feitiçaria. Seus detalhes variam de sociedade para sociedade. Uma das primeiras investigações antropológicas minuciosas da feitiçaria foi empreendida por E. E. Evans-Pritchard, que estudou os azande do Sudão meridional. Os azande distinguiam três variedades de magia. A primeira era a magia boa, benevolente, a qual incluía a consulta de oráculos e adivinhos, o uso de amuletos para proteção contra feitiços, ritos para obter a fertilidade das colheitas, e até bagbuduma, a magia homicida, desde que limitada à vingança por alguém a quem mataram um parente. A boa magia era usada para se fazer justiça, tal como era entendida pela sociedade azande, e bagbuduma tornava-se ineficaz quando empregada para fins injustos. A feitiçaria, por outro lado, era injusta. Feitiçaria era o uso da magia, em especial a magia que usa objetos materiais, para infligir danos àqueles a quem se odiava sem razões justas. A feitiçaria era uma forma de agressão injusta decorrente de ciúme, inveja, cobiça, avidez ou outros desejos humanos desprezíveis. A feitiçaria utilizava a magia numa forma antissocial e era condenada pela sociedade azande. Evans-Pritchard chamou “bruxaria” à terceira variedade de magia. Essa “bruxaria” era um poder interior herdado por um homem de seu pai e por uma mulher de sua mãe. A origem desse poder, ou mangu, existia fisicamente dentro do estômago do “bruxo” ou da “bruxa”, ou estava preso ao seu fígado como um inchaço oval e escuro no qual poderiam ser encontrados vários objetos pequenos, ou então como uma bola redonda e peluda com dentes.Os bruxos [ou, mais apropriadamente, os feiticeiros] azande celebravam reuniões em que se banqueteavam e praticavam juntos a magia maléfica.
Faziam um unguento especial que esfregavam na pele a fim de se tornarem invisíveis. Vagavam de noite ou em espírito ou em seus próprios corpos. Com frequência, supunha-se que o bruxo ficava de noite deitado na cama com sua esposa, ao passo que seu espírito se soltava e ia juntar-se ao de outros bruxos para comerem as almas das vítimas. Por vezes, os bruxos atacavam a vítima fisicamente, arrancando-lhe pedaços de carne para devorá-los em suas reuniões secretas. Quem quer que tivesse uma doença demorada e debilitante era suscetível de ser a vítima do bruxo. Os gatos bruxos tinham relações sexuais com mulheres. Os poderes dos bruxos azande eram enormes:
Se uma praga ataca a colheita de amendoim, foi bruxaria; se o mato é batido em vão em busca de caça, foi bruxaria; se as mulheres esvaziam laboriosamente a água de um poço e conseguem apenas uns míseros peixinhos, foi bruxaria; [...] se uma pessoa está mal-humorada e trata seu marido com indiferença, foi bruxaria; se um príncipe se mostra frio e distante com seu súdito, foi bruxaria; se um rito mágico não teve êxito, foi bruxaria; de fato, se um insucesso ou infortúnio qualquer se abater sobre qualquer pessoa, a qualquer hora e em relação a qualquer das múltiplas atividades de sua vida, pode ser atribuído à bruxaria.1 Os azande empregaram adivinhos e xamãs para protegê-los dos bruxos e curá-los dos efeitos de bruxarias.
Os bechuana de Botsuana distinguem entre os feiticeiros diurnos, que praticam a feitiçaria de forma irregular e apenas em ocasiões específicas, usualmente contra pagamento, e os mais aterradores bruxos noturnos, que se fazem acompanhar de seus familiares na forma de animais (usualmente corujas). Os bruxos noturnos são universalmente malignos e praticam seus bruxedos e feitiços a torto e a direito. De um modo geral, pensa-se que são predominantemente mulheres velhas. Os basuto, uma tribo banto da África do Sul, também distinguiam entre dois grupos de feiticeiros, um dos quais consistia principalmente em mulheres que voavam de noite, montadas “em galhos ou em moscas, reuniam-se em assembleias e dançavam completamente nuas”.2 Em outras sociedades, os feiticeiros são acusados de canibalismo, incesto, ninfomania e outras atividades ofensivas para a sociedade.
A variação em feitiçaria entre diferentes sociedades é natural. O que surpreende é o grau de semelhança. A semelhança entre muitas crenças africanas em bruxas e as da Europa histórica é pronunciada. As “bruxarias” africana e europeia incluem as seguintes características: é geralmente praticada por mulheres, quase sempre idosas. As bruxas reúnem-se em assembleias noturnas, deixando para trás seus corpos ou mudando de formato a fim de poderem voar para os lugares de reunião. A bruxa suga o sangue das vítimas ou devora-lhes os órgãos, fazendo com que elas definhem até morrer. As bruxas comem crianças ou causam-lhes, de algum outro modo, a morte, levando às vezes sua carne para a assembleia. Cavalgam em vassouras ou outros objetos, voam nuas, usam unguentos para mudar de forma, executam danças de roda, possuem espíritos familiares e praticam orgias. É claro, presume-se que nenhum grupo de feiticeiros é capaz de fazer todas essas coisas, mas todas essas crenças podem ser encontradas tanto na Europa quanto na África. No total, pelo menos 50 diferentes motivos da bruxaria europeia podem ser encontrados em outras sociedades .3A semelhança universal das crenças na feitiçaria constitui um dos mais curiosos e importantes dilemas no estudo da bruxaria. Quando nos deparamos, a séculos e continentes de distância, com a mesma ideia de um bruxa noturna seduzindo homens e matando crianças, ou de uma feiticeira cavalgando uma vassoura pelos ares, não temos o direito de rejeitar ou de desprezar a questão de como tais semelhanças surgiram.
As possíveis explicações das semelhanças incluem: (1) coincidência; (2) difusão cultural; (3) herança arquetípica/estrutural; (4) existência de uma antiga e coerente religião universal de bruxaria. O volume de provas numa tão ampla variedade de culturas e geografias através dos milênios torna a coincidência virtualmente impossível. Por outro lado, postular uma religião universal de bruxaria ignora as enormes dessemelhanças que também existem entre sociedades e o fato de não existirem provas sobre quaisquer conexões explícitas. A explicação baseada numa herança arquetípica ou estrutural é uma opção admissível. É certo que a estrutura do cérebro humano é determinada por padrões genéticos e há grandes probabilidades de que as estruturas mentais também sejam, portanto, geneticamente inerentes. Podem existir, pois, semelhanças universais da estrutura mental derivadas do pool genético humano comum. É possível (embora esteja longe de ser demonstrado) que tais estruturas mentais semelhantes produzam arquétipos, ou respostas semelhantes para ideias análogas. Argumentam os junguianos, por exemplo, que todo o mundo responde à noção do “velho sábio”, o indivíduo benévolo e afável mais idoso que aí está para guiar-nos. A imagem desse velho sábio varia de cultura para cultura (Gandalf, de Tolkien, em O Senhor dos Anéis, dificilmente impressionaria alguém em Botsuana), mas o arquétipo subjacente é universal.
Entretanto, as semelhanças universais nas crenças da feitiçaria excedem as que essas teorias foram capazes de predizer. A difusão cultural, o intercâmbio de ideias entre sociedades, é parte da resposta, sem dúvida. Mas o número e o detalhe das semelhanças através de abismos de tempo e geografia é algo assombroso. O quebra-cabeças permanece por resolver.
O problema tem numerosas implicações diretas para a interpretação da bruxaria europeia. Muitos historiadores recentes explicaram a bruxaria unicamente como uma modalidade de heresia cristã ou como uma invenção dos escolásticos e inquisidores, rejeitando como destituídas de importância as suas semelhanças com a feitiçaria de outras culturas. Isso acarretou uma descrição exagerada dos elementos cristãos e um isolamento inadequado do fenômeno.
Por outro lado, os antropólogos têm sido propensos a subestimar os elementos cristãos. A verdade situa-se a meio caminho: a feitiçaria, similar à que existe em escala mundial, é o mais antigo e mais básico elemento na bruxaria europeia histórica, mas outros elementos transformaram gradualmente a feitiçaria europeia em bruxaria diabólica.
Antropólogos e historiadores contribuíram imensamente para o esclarecimento da história social da feitiçaria. Na África, a feitiçaria é mais comumente praticada por mulheres do que por homens, mas os xamãs ou curandeiros são, na grande maioria dos casos, homens. As acusações de feitiçaria surgem, de um modo geral, em situações de tensão no seio de famílias ou grupos, sobretudo em períodos turbulentos e instáveis. As acusações circulam frequentemente entre as esposas em famílias poligâmicas, e entre sogras e noras. As acusações são formuladas indistintamente contra velhos e jovens, mas as pessoas mais idosas têm maiores probabilidades de ser visadas, talvez por causa da idade e da doença as tornarem insociáveis, talvez simplesmente porque são débeis. Uma acusação comum é que uma pessoa idosa prolongou sua vida devorando os corpos ou as almas de crianças. Alguém que seja notoriamente estranho ou insociável está sujeito a tais acusações. O minucioso estudo de Salem por Boyer e Nissenbaum enfatizou a importância da geografia e da política religiosa locais como influências decisivas sobre o padrão de acusações de bruxaria.
As diferenças culturais na determinação dos padrões de acusação foram observadas por antropólogos. Entre os nyakyusa da Tanzânia meridional, a feitiçaria é praticada por ambos os sexos. São principalmente acusados de comer os órgãos internos de vizinhos adormecidos e de secar o leite do gado.
Por outro lado, os pondo, na província sul-africana do Cabo, só têm bruxas, cujo crime mais comum é terem relações sexuais com espíritos familiares. A razão evidente para a diferença é que os nyakyusa são sexualmente estáveis, mas inseguros do ponto de vista nutricional, pelo que invejam o alimento de seus vizinhos e atribuem a nutrição deles à comida ilícita, ao passo que os pondo, que são sexualmente mais inseguros, manifestam seus temores mais intensamente em termos de sexo do que de alimento.
Assim como a expressão da bruxaria pode mudar de sociedade para sociedade, dependendo da sua função, também essa função pode mudar com o tempo no seio de uma sociedade. Os bakweri, de Camarões ocidental, por exemplo, tinham um temor profundo da feitiçaria no período anterior à década de 1950. Atormentados pela ambivalência sobre riqueza e pobreza, por um sentimento de culpa coletiva acerca do declínio de seu poder e status e pelo medo de que sua baixa fertilidade viesse a causar o seu desaparecimento, eles foram dominados por ciúmes que se traduziram no medo da feitiçaria. Na década de 1950, seu status econômico melhorou de forma notável em consequência de uma produção recorde de um de seus principais cultivos, a banana, e o período de prosperidade acarretou, primeiro, o expurgo dos suspeitos de feitiçaria e, depois, concluída a catarse, um declínio nas acusações e na crença em feitiçaria de um modo geral. Na década de 1960, quando os bakueri sofreram um retrocesso econômico, ocorreu um ressurgimento do medo e das acusações. Xamãs, curandeiros e curanderos (os “xamãs” do México e do sudoeste dos Estados Unidos), cuja tarefa consiste em controlar e frustrar os feitiços, fazem parte do padrão de crenças sobre a feitiçaria. O chefe tribal, o cacique da aldeia ou outras autoridades estão investidos da responsabilidade de proteger seu povo dos efeitos de feitiços. Uma casta particular de bruxos (a que os antropólogos chamam “oráculos”) é consultada a fim de identificar e frustrar os feiticeiros maléficos. “Os nioro, da região oeste de Uganda, consultam homens que eles acreditam estar possuídos pelos espíritos (chamados mbandua) e revelam assuntos secretos como seus porta-vozes.”4 Também pode ser consultado um adivinho: este não fala com a voz do espírito, mas “interpreta a resposta que se presume ter sido dada pelo comportamento dos objetos mecânicos que ele usa”.5 Uma mensagem pode ser lida nos percursos dos planetas ou nas pegadas de animais. Danças e outros rituais, como os dos dançarinos ndakó-gboyá dos nupe, podem servir para identificar e expulsar espíritos e feiticeiros maléficos. Os dançarinos ndakó-gboyá envergam enormes disfarces cilíndricos e identificam os feiticeiros acenando para eles com a cabeça encoberta por essas fantasmagóricas formas. Em outros cultos, os xamãs identificam os feiticeiros numa fileira de aldeões olhando para eles num espelho e usando em seguida seus enormes poderes sociais para extrair confissões daqueles que foram selecionados. Tais atividades de purificação da comunidade contra os efeitos maléficos da bruxaria podem propagar-se consideravelmente em épocas de tensão, quando comunidades inteiras sentem a necessidade de proteção contra a feitiçaria. Cultos completos, como o dos ndakó-gboyá, podem surgir em tais épocas. Esses cultos, praticando um ritual relativamente simples cujo intuito é descobrir e neutralizar o poder de feiticeiros maléficos, carecem de estrutura formal, organização e doutrina, cruzam com facilidade fronteiras étnicas e adaptam-se às tradições de diferentes povos.Na África Central e na América Central, antropólogos concluíram que as comunidades que são pequenas e nas quais a estrutura social é compacta mostram-se particularmente propensas a alimentar crenças feiticeiras, porque se sentem cercadas e ameaçadas. Seus temores aumentam sempre que as relações internas são confusas ou quando a sociedade se encontra sob fortíssima pressão externa. É por isso que em algumas sociedades as acusações de feitiçaria recrudesceram, pelo menos temporariamente, durante o período do colonialismo europeu. Em comunidades maiores, ou onde as associações sociais são mais livres e escapam com mais facilidade a vínculos indesejáveis, como nas sociedades nômades, as crenças em feitiçaria são menos comuns. As crenças variam em intensidade, espécie e função quando os padrões sociais variam, mas os antropólogos foram incapazes de correlacionar tipos específicos de crença com tipos especiais de padrões sociais. Muito trabalho investigativo resta ainda por fazer nesse campo. Com todas as suas variações, existe uma crença geral e uma prática universal de feitiçaria. Ela fala às necessidades humanas de justiça, proteção e vingança num mundo que, com excessiva frequência, parece fora do nosso controle.Algumas semelhanças entre a bruxaria europeia e a feitiçaria não europeia resultam da exportação de ideias europeias por meio do colonialismo. O vodu é um exemplo: começou como uma religião levada para o Haiti por escravos trazidos da costa do Benin (o nome é uma corruptela da palavra iorubá para “deus”). Sob a influência do cristianismo e de outras ideias europeias converteu-se em uma religião sincrética que combinou não só diferentes cultos africanos mas também certas crenças do folclore europeu. Em resumo, é uma espécie de conglomeração de elementos de todas as espécies, dominada por tradições africanas. Essa religião é praticada por noventa por cento do povo haitiano. Ao mesmo tempo, essas pessoas consideram-se católicas.6 A base da religião é o culto de loa (deuses ou espíritos). A Igreja Católica atacou assiduamente o vodu, equiparando os loa a demônios, mas as pessoas resistiram a tais identificações. Como disse um camponês haitiano a um antropólogo inquisitivo: “Para servir aos loa você tem de ser católico.”7 Os voduístas fazem uma distinção entre o culto dos loa, que é uma religião, e a prática de magia. Toda magia é considerada negra, podendo ser trabalhada mecanicamente ou com a ajuda dos loa, que podem assim ser usados para fins maléficos. Mas é também aos loa que as pessoas devem dirigir-se para obter proteção contra a magia maléfica. É difícil distinguir orações consagradas aos loa e invocações mágicas dos loa. A feitiçaria vodu, uma mistura de ideias europeias e africanas, inclui palavras mágicas, conjuros, uso de imagens, precipitação de chuva e culto aos mortos. Uma das crenças mais peculiares é o conceito de zumbis, os “mortos-vivos”, cadáveres que são exumados e a quem os feiticeiros fazem caminhar e cumprir suas ordens. A feitiçaria vodu também contém um certo número de elementos provavelmente derivados da Europa. Os feiticeiros podem matar crianças em suas reuniões rituais ou então capturá-las à noite em seus lares e sugar-lhes o sangue. Os feiticeiros esfregam o corpo com um unguento que lhes remove a pele, pelo que podem voar pelos ares. As estrelas cadentes são, na realidade, feiticeiros voando. Os feiticeiros podem metamorfosear-se em lobos, porcos, cavalos ou gatos pretos.
Essa mistura de elementos europeus e africanos é um exemplo avançado do sincretismo encontrado em outras sociedades colonizadas por europeus. É difícil distinguir os elementos nativos dos importados. Por exemplo, a crença na mudança de forma era tão comum na Europa quanto no resto do mundo, embora a ênfase dada aos lobos e gatos pretos no Haiti sugira forte influência europeia. Os antropólogos descreveram como experiências reais durante práticas do culto podem ter reforçado a crença na licantropia. “Durante a noite, fogueiras gigantescas eram acesas no descampado; mulheres nuas executavam danças abomináveis em torno das fogueiras... contorcendo seus corpos em formas assustadoras.”8 Um outro observador europeu viu um sacerdote vodu possuído pelo espírito do “imperador” haitiano Desselines: “Ele era o próprio homem. Vi o rosto feroz, a fanática expressão de compostura, e todo o corpo moldado numa atitude vingativa.”9 Tais poderes de imitação inconsciente explicam a força da crença universal na mudança de formas corporais.