EU DUVIDO QUE UM DIA ENTENDA DIREITO o que aconteceu comigo naquele dia.
Mamãe tinha me levado para tomar sorvete na sorveteria brasileira que ficava perto do nosso flat no Queens. Para comemorar, ela dissera.
Tudo era motivo de comemoração para Cristiane Azevedo. Tudo mesmo. Ela era aquele tipo de mãe que se eu acertasse só uma questão em uma prova inteirinha, a gente ia comemorar porque eu não tinha tirado zero. Juro! Mas dessa vez tínhamos mesmo motivos pra comemorar: mamãe tinha conseguido seu primeiro papel importante na Broadway.
Ela era atriz de musical, e era boa, mas no Brasil ninguém tá nem aí pra musicais, então nos mudamos pra Nova York no ano passado. Até agora, mamãe trabalhava num daqueles restaurantes que os garçons dançam e cantam, e o chefe dela era um porco horroroso.
Não tínhamos ninguém. Nós duas contra o mundo. Ainda mais agora que nem no nosso país não estávamos mais. E eu não era normal. Não mesmo. Nunca conheci outra criança que saiba ficar invisível – Harry Potter não conta, ele precisava de capa e eu não.
Onde estávamos mesmo? Ah, sim! Sorveteria brasileira. Pois é, TDAH faz isso com as pessoas: não sou boa com essa história de "foco". Mas quem se importa?
Entramos na sorveteria e parecia que ia ficar tudo bem, até a atendente do caixa olhar pra mim e sorrir com mais dentes que um tubarão. E tubarões têm muitos dentes. Trezentos, tipo os espartanos que Leônidas liderou. Mamãe quem disse. Ela é muito específica quando diz que o TDAH só quer dizer que eu sou tão inteligente, mas tão inteligente, que aprendo de um jeito diferente que outras crianças.
Bom, já deu pra entender que a minha mãe era tipo a Mary Poppins, né? Praticamente perfeita em todas as maneiras. Essa tradução soou estranha... Perdi o fio da meada de novo! Que saco, Laura!
Vamos lá, foco! Sorveteria, atendente Sorriso de Tubarão, e... Ah, é! No instante seguinte mamãe estava me enfiando dentro do pangaré que a gente chamava de carro – que a gente na verdade, na verdade mesmo chamava de Pé de Pano, o Corsa branco – e empurrando dois picolés no meu colo enquanto afundava o pé no acelerador antes mesmo de terminar de fechar a porta.
Por algum motivo besta, a primeira coisa que eu disse foi:
– Mamãe, o cinto.
Segurança em primeiro lugar, pessoal! (Atenção: essa história não é patrocinada pelo Detran).
Mas, como eu disse, Cristiane Azevedo era praticamente perfeita de todas as maneiras, e respondeu enquanto colocava o cinto:
– Come esse sorvete antes que vire meleca derretida de chocolate e fique parecendo que você cagou nas calças, Laura!
E sinceramente? Antes morrer engasgada com picolé de chocolate do que parecer que caguei nas calças durante uma perseguição de carro super radical a 69 km/h, que é o máximo que um motor de Corsa aguenta.
Atrás de nós, Sorriso de Tubarão já não tinha nada de humano e aparente conseguia correr na mesma velocidade que um Corsa, o que não é nenhum grande feito, afinal é um Corsa.
– Onde a gente tá indo? – perguntei com a boca toda melada de sorvete.
– Merda! – mamãe xingou alto olhando pelo retrovisor antes de murmurar. – Não vai dar pra chegar lá... Plano B.
– Plano B? Que plano B? Mãe, que merda tá acontecendo? – isso aí, eu aos 8 anos de idade. Falando "merda". E acham que mamãe se importava? Não, porque a cada 10 palavras que ela falava, pelo menos 4 eram "merda".
– Mãe é a sua fuça, garota! Eu sou mamãe! – ela brigou girando o carro 180° graus na manobra mais ousada que qualquer pessoa na história já fez com um Corsa. – Estamos indo pra um lugar seguro. E lá vamos falar do seu pai.
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PROGRAMA DE PROTEÇÃO AO SEMIDEUS • j. grace
FanfictionO pub The Pantheon em Nova York era um favorito da clientela pela boa comida e bebida e também pelo bom atendimento da dona, a brasileira Maria Laura. O que a maioria não sabe é que o The Pantheon é uma fachada para uma casa segura para semideuses f...