81. Rebuscamento não é sinônimo de boa escrita

430 91 151
                                    

#praTodosVerem | Descrição da imagem: sobre um papel em branco, vê-se uma caneta dourada com ponta fina de metal, cheia de arabescos e alto relevos

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

#praTodosVerem | Descrição da imagem: sobre um papel em branco, vê-se uma caneta dourada com ponta fina de metal, cheia de arabescos e alto relevos.

*** 

Uma prática comum no Wattpad são escritores que enchem os seus textos com palavras difíceis, mesóclises (sê-lo-ia, contar-me-ei), expressões em latim, termos técnicos sem explicação, tudo para dar à narrativa um "ar de rebuscamento" como se isso fosse definir um texto de excelência literária. E sabe o que é mais engraçado? Como muitos dos usuários creem nisso, a quantidade de comentários de "uau, que escrita maravilhosa!" ou "gente, estou abalada com esse texto!" é comum. Muito comum.

Vou te dizer uma coisa: boa parte das pessoas que comentam essas coisas sobre esses livros "rebuscados" não entenderam nada do texto! E, por julgarem que são "burras" (entre dezenas de aspas, por favor!) e que aquele tipo de escrita é "o auge", têm medo de apontar o equívoco e entram no ciclo de, quando vão escrever os próprios livros, buscar "coisas difíceis" para se fingir de eruditos.

Isso é ridículo. E não, não há outra palavra.

E digo mais: por vezes, sem contexto, sem ser em uma narrativa que peça o uso de certos termos, os livros que se recheiam de palavras difíceis soam mais como querer ser babaca.

Entenda que usar uma linguagem mais usual não significa ter um texto "mais pobre". Quer só um exemplo de livro impactante que tem uma linguagem acessível e é genial? "Vidas Secas" do Graciliano Ramos. Quer outro? "Capitães da Areia" do Jorge Amado. Quer um recente? "Prólogo, Ato, Epílogo" da Fernanda Montenegro. Um mais atual ainda? A coletânea de contos "Olhos d'Água" da Conceição Evaristo. Uma série famosa e aclamada que exalta um universo rico e com texto acessível? "As Crônicas de Nárnia" do C. S. Lewis.

Antes de rebuscar o teu texto (e rebuscar de forma errada), foque nas ideias. Mais vale uma narrativa de linguagem comum que converse com os leitores, que crie o diálogo, do que um texto complexo que não alcança ninguém.

E há ainda um outro tipo de rebuscamento que é voltado para as especialidades científicas. Quando vamos escrever sobre termos médicos, termos de física nuclear, termos jurídicos, etc., o esperado é que nós pesquisemos sobre eles. E temos de fazer isso se quisermos dar substância para as nossas obras. O problema é quando, na intenção de "mostrar que entende do assunto" ou de mostrar que o personagem sabe sobre o que fala, o escritor enche o texto com termos técnicos e não traduz para os leitores.

Eu já me deparei com um livro onde a protagonista era arquiteta e as autoras entupiram a trama com termos de desenho técnico que só elas duas conheciam. Pra quê fazer isso? Se o livro fosse direcionado para o público interno de um escritório de Arquitetura, ok. É uma tática de comunicação interna da empresa. Agora, fazer isso na Amazon? Na categoria de romance? Aí não dá. E teve consequências, pois o livro estava cheio de avaliações de três e duas estrelas. As pessoas afirmavam que o texto era correto, o romance funcionava, mas elas não entendiam boa parte do entorno da protagonista. Teve uma crítica que chegou a dizer que "se cortar a parte da Arquitetura e deixasse só o romance, daria um conto excelente".

De boca a boca, de crítica em crítica, os leitores foram embora.

Simplifique as coisas.

Por exemplo, como já mencionei várias vezes, eu sou formado em Comunicação Social. Eu tenho consciência de que tenho um repertório vasto que é algo que acontece com a maioria das pessoas que passam por uma Universidade. É o normal. Contudo, eu preciso moldar o meu discurso.

Já me perguntaram "Nossa, mas tu vais censurar o que tu escreve?". Sim, nesse sentido de rebuscamento, eu vou. Entenda: nós vivemos em um país que não lê e que não é estimulado a ler. Nós vivemos em um país onde a aclamada "luta pela democratização da literatura" não envolve as classes mais baixas, envolve apenas quem compra livros. E quem não tem condições de dar comida para os filhos? Não pode ter acesso a livros, a arte? Nós precisamos sair de nossas bolhas. Se eu subir no pedestal e escrever de forma rebuscada, como escrevo em uma matéria de jornal ou em artigos científicos, coisas que muitas pessoas aplaudem como "o suprassumo da escrita bem feita", eu erguerei ainda mais barreiras. Será uma contribuição para que a "democratização da literatura" fique apenas nas classes A e B da sociedade.

O nome disso é diferenciação. Antes de cursar Jornalismo, eu fiz Direito durante dois anos e foi um choque. O que poderia ser dito em uma frase, uma palavra, eles entopem de termos e de rebuscamentos bobos que resultam em laudas e mais laudas que apenas quem é da área compreende. Eles estão impondo uma barreira de acesso. Por que estou dizendo isso? Porque tem muitas pessoas no mundo literário que adoram barreiras de acesso; adoram esse preciosismo.

Em uma sociedade onde a maioria das pessoas não têm acesso à leitura, esses preciosismos só servem para inflar egos de muitas pessoas, no nosso caso, escritores. As pessoas sem acesso à educação não compreendem o que eles falam, não têm estímulos e mecanismos para ir em busca de conhecimento, baixam a cabeça e pensam "Nossa, eu não entendo isso. Ele é melhor do que, então.".

E, com tanto preciosismo, com tantas barreiras impostas, o abismo social só aumenta.

Um bom escritor, uma escritora de excelência, não necessariamente é aquela que tem um esmero técnico acima do normal. É, sim, aquele capaz de usar essas técnicas para moldar uma narrativa universal. Quer o maior exemplo de simplicidade de todos? "O Pequeno Príncipe" de Antoine Saint-Exupéry.

Não há rebuscamento na obra clássica de Saint-Exupéry, perceba. O texto sobre o príncipe é tão simples que pode parecer até bobo para muitas pessoas. Mas aí é que está o ponto: ele fala com todo mundo. A complexidade de "O Pequeno Príncipe" não está em técnicas gramaticais ou em técnicas narrativas. A complexidade está na reflexão que ele causa em crianças e em adultos.

O livro funciona.

Leia "O Pequeno Príncipe" para o filho de dona Bernadete que mora aqui na Vila Maranhão, bairro periférico de São Luís, leia para o filho do desembargador João que vive na Ponta d'Areia, bairro mais caro da capital maranhense, a história é compreensível a ambos. Claro, os contextos sociais, as oportunidades afetivas, os arredores dessas crianças, tudo influenciará nesse entendimento. No entanto, se ambos sabem ler, ambos entenderão a história e ambos tirarão lições dali.

O já citado "Vidas Secas" do Graciliano Ramos é a mesma coisa. Ele é plural. É a vida humana em sua essência, a vida humana em sua dor. Há, sim, termos regionais, mas isso não está descontextualizado; não é gratuito. "Vidas Secas" exalta o povo em sua mais bela e simples essência de existir e resistir. É a pluralidade de vidas que convence, emociona e conversa com todos nós.

Isso também é democratizar a leitura.

Temos de usar nossa escrita para abraçar, não para afastar.

Abrace.

***

WATTPAD: guia de sobrevivênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora