Capítulo 1

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SHAY

Shay observou com felicidade a chuva que caia por trás da vidraça. Em pouco tempo, as gotas que lhe traziam reflexão sobre sua existência seriam substituídas por folículos de neve e então teria que colocar seus vasos de planta que enfeitavam a varanda na estufa. Há muito que se trancara no quarto para se dedicar às provas de fim de ano da faculdade, mas a procrastinação lhe tomara de tal forma que sequer era capaz de se auto hipnotizar para uma assídua dedicação ao TCC de História. E isso lhe trouxera um aperto em cogitar que essa talvez não seria a sua área. Talvez Filosofia, talvez...

Abandonou a janela e observou com tentação a armação dos óculos hologramáticos. Não deveria ceder. Nos últimos dias aqueles óculos estiveram presos em sua cabeça e ela se entregara ao consumo do Reality Show que parara o mundo e tornara as ruas num lugar deserto - O Éden.

Bufou, se livrando da coberta e se arrastando até o banheiro, onde se viu refletida no espelho.

— Você precisa de vinte minutos de sol — soou com frieza o sistema de análise em Raio X.

Jogou água no rosto e mandaria o aparelho de tecnologia recém instalado se foder, mas não queria se contaminar com as próprias palavras. Ao invés disso, observou-se mais uma vez, por trás de olheiras que não estavam ali da última vez que se vira, para aceitar o quão hipócrita estava se tornando por consumir aquela maldita porcaria de Reality Show.

Afinal, fora graças à sua redação a respeito que fizera com que ganhasse uma bolsa integral na faculdade. Uma crítica muito bem construída e cheia de argumentos que colocava em xeque o governo e a mídia em sua principal programação de entretenimento, o Reality Show que, por mais que parecesse uma forma esquerdista de preservação cultural e ambiental, era somente um experimento científico exposto de uma forma mentirosa a dar a entender a toda população do mundo que não passava de transmissão de conhecimento para dentro da casa das famílias. E a humanidade naquelas alturas estava cega demais para compreender aquilo.

O Éden fora a última ilha descoberta do Planeta Terra. Uma espécie de camada de terra distante e dividida em América, Europa, África, Ásia, Oceania e Antártida. O povo que lá vivia estava ainda muito atrasado e presos em suas políticas e crenças de modo que os principais governadores do mundo decidiram que seria interessante que a Inclusão desse povo ao conhecimento sublime fosse por etapas, para que não fossem traumatizados com terríveis choques de realidade, visto que a primeira aparição extraterrestre levou ao suicídio metade do mundo no ano 3000 antes de Cristo. Portanto, de tempo em tempo, os Edenianos seriam sujeitados a uma nova experiência, numa sequencia de degraus de evolução, até que por fim estivessem prontos para a Inclusão ao resto do planeta. Mas a história tomara rumos muitos mais discutíveis, a ponto da evolução deles serem transmitidas em Tv aberta e, graças a tecnologia, cada telespectador tinha a sua própria câmera, um aparelho do tamanho de uma mosca, que lhes dava o poder de voar pelo mundo e assistir o que bem quisessem. Até mesmo a vida de quem bem quisessem.

Mas os Edenianos não estavam abandonados em seus territórios, presos em seus escassos conhecimentos e devaneios. Para isso existia o projeto Stars. Uma espécie de grupo de missionários especializados. Sempre que o risco de extinção tornava-se iminente na ilha, um missionário era enviado até eles. Tal missionário passava por testes psicológicos e era incubado por dias e enviado num foguete disfarçado de estrela cadente. O sistema de dentro do foguete rejuvenescia o missionário para a idade a qual ele precisava ter para cumprir sua missão, visto que há muito tempo a humanidade descobrira a cura para a morte e tomara o controle do envelhecimento, tornando-o uma mera escolha de consciência. O último missionário enviado para o Éden tomara para si o nome de Jim Carrey e levara consigo a missão de propagar a consciência de que a vida era muito breve antes da descoberta para a cura da morte e, portanto, não deveriam se apegar ao desejo da fama e sucesso, afinal, tudo não passava de ecos do ego. Mas Jim Carrey adoecera, tomado pela tristeza edeniana que assolava-os naqueles tempos e lutava para não morrer como Michael Jackson ou a maioria dos outros que por ali desceram.

Shay acomodou-se na privada para urinar enquanto ativava na pulseira o holograma a sua frente. E foi passando e repassando páginas do seu email até encontrar a redação. Talvez ela lhe puxasse de volta do vício o qual se enfiara, assim como o restante da população.

ESTAMOS DOENTES

Por Shay Elaiva de Netuno

No ano 2000 após a expansão da consciência, assistimos o avanço dos Edenianos que se trancaram em suas casas todas as noites em busca de reality shows fúteis que compactavam imagens através de câmeras de vídeo e as enviavam totalmente editadas conforme a vontade da emissora para os televisores através de antenas e satélites. Acreditamos que naquele instante começava a marcha rumo a era de Aquário, mas eles retrocederam.

Julgamo-os por experimentos questionáveis, mal sucedidos ou de programação mental doente. Observá-los presos em seus televisores observando artistas da classe média alta em uma casa, ganhando dinheiro, brigando por coisas idiotas ou transando embaixo de cobertores fez com que o Reality Éden perdesse 90% de sua audiência. Afinal, quem gostaria de assistir pessoas que estão acomodadas em seus sofás assistindo outras pessoas?

A verdade é que não percebemos que estamos retrocedendo como os edenianos do segundo milênio D.C. e isso me faz pensar se somos um povo inferior a alguma população que está nos usando como experimento científico ou entretenimento. Se tudo o que estamos sujeitos hoje em dia já tem uma cura e não querem nos revelar, assim como a velhice, as doenças e a morte são para os edenianos que assistimos todos os dias sofrendo com a partida de entes queridos. Afinal de contas, o bizarro show de horrores que é o Reality Show Éden está nos mantendo trancados em casa para assistirmos a violência a qual um dia fomos capazes de criar nos primórdios da humanidade, manifestando-as em forma de guerra, violência doméstica, soberba, vaidade, vícios, atos sexuais horrendos e demais coisas que prefiro não me forçar a lembrar. E se de fato não estamos só interessados em estudar o comportamento instintivo de uma sociedade atrasada a qual um dia pertencemos? E se, inconscientemente, só estamos buscando imagens de coisas terríveis que o ser humano é capaz de fazer para satisfazer algo ruim que ainda mora dentro de nós?

Embora meu ponto de vista divida opiniões, uma coisa eu sei. Se estamos sendo assistidos por seres superiores, a audiência do reality show deles deve ter caído bastante.

A voz de Ella soou em telepatia e trouxe Shay de volta de seu devaneio.

— Querida, pode falar agora?

Ella era sua melhor amiga da faculdade. A única que Shay era capaz de revelar todos os seus segredos e vontades, inclusive a que contou que estava acompanhando o Éden.

Respirou fundo, fechou os olhos e se permitiu entrar em transe para acessar seu subconsciente e por fim enviar uma mensagem por telepatia para Ella.

— Pode falar, amiga.

Imediatamente Ella se conectou a ela.

— Você acompanhou seu crush nos últimos dias?

— Fred?

— Guns.

Shay se permitiu rir.

— Ella, Guns é só o menino do Éden. O que tenho por ele é uma admiração. Gosto de assisti-lo e só. Ele é um cara evoluído comparado ao resto da ilha. Você bem sabe que é só isso. E você também sabe que Fred não gosta de brincadeiras. Pare com isso se não vai causar problemas.

— Estou brincando, oras. Como que o Fred poderia ter ciúmes de alguém que você nunca terá contato? Enfim. Mas você tem assistido a vida dele no reality?

— Sim, e vi que sua câmera também está o dia todo online a segui-lo.

— Então não preciso te contar o que rolou hoje.

— Aconteceu algo com ele?

— Por que a preocupação? — Ella sorriu com deboche.

— Hoje não fiquei online. Estou lutando comigo mesma para fazer o TCC.

O breve silêncio fez com que Shay quase pirasse de ansiedade.

— Shay, — Ella retornou — acho que teremos episódios tristes em breve se continuarmos seguindo o Guns.

— Amiga, o que houve?

— A mãe de Guns...

Shay não respondeu, mas continuou em transe à espera da nova mensagem, afinal Ella bem sabia que ela odiava que fizesse drama para desembuchar.

— Está com câncer. 

Lágrimas no ÉdenOnde histórias criam vida. Descubra agora