GUNS
Seu all star preto e branco nunca esteve tão sujo. Na verdade, andar por aquela cidade deixava qualquer coisa suja, inclusive a alma.
Meia hora atrás estivera no banheiro do bar beijando uma viciada em cocaína. Mirela. A garota que anos atrás era a rockeira mais linda da cidade. Mas isso fora muito antes de conhecer o mundo das drogas e trair o PROERD.
—Abaixa as calças.
—Hãn?
—Vai. Não quer?
Guns a observara com o desânimo de quem busca a pilha debaixo do sofá. Mirela ainda era bonita, não linda, bonita. Tinha traços marcantes de maldade e seus amigos apelidaram-na de Sucubus. Teria agradecido a sorte de ser o vocalista da banda, mesmo anônima, nos tempos de juventude. Isso lhe dava acesso fácil a eventos de rock e admiração das jovens da cidade que romantizavam o cabeludo que toca violão no fundo da classe. Mas especialmente naquela noite Guns não estava presente.
—Estou fedendo a cigarro? — ela cheirou o próprio cabelo ruivo.
Está, pensou.
—Não. Só estou com problemas pessoais. Acho que a bebida piorou isso.
Alguém bateu na porta.
Mirela levantou as sobrancelhas por cima dos olhos contornados de lápis preto à espera de que ele terminasse de pensar e decidisse sair ou atacá-la finalmente.
—Quer beber algo? — bateram na porta novamente no momento em que Mirela fez que sim.
Guns escapou sem vergonha alguma e passou pelo Punk que se remexia do lado de fora. Ambos se encararam. O de cabelo moicano não aguentou exibir por muito tempo sua cara de fúria pois a vontade de mijar era maior, Guns sorriu pra ele pra deixar claro sua ausência de medo e alto transtorno de ousadia. Desenvolvera essa habilidade nos tempos de escola para se defender dos garotos maiores.
—Fred! —Ouviu a voz de Mirela atrás de si, feliz, ao esbarrar no Punk que deixara pra trás. Sequer teve a decência de se despedir ou respeitar a privacidade do conhecido e ficou por lá mesmo, dentro do banheiro. Pra ela, droga e sexo se tornara infinitamente melhor do que álcool e conversa.
Pensou, repensou e debaixo do solo de November Rain desistiu de se despedir dos amigos na mesa de bilhar e tomou as ruas rumo ao seu lar, torcendo para não estar com o cheiro de Mirela para que seu pai não percebesse e começasse com seus sermões de como o diabo destrói o homem.
O sereno estava frio, mas Guns nada sentia. Nada. Era como se fosse um pedaço de carne perambulando pelo mundo em busca de um sentido pra tudo aquilo que não importava. Apertou o casaco xadrez em torno de si e atravessou a rua sem olhar para os lados. Uma lufada de vento soprou contra sua face e o poste apagou sua luz no instante que o percebeu, mas a existência de demônios já não era algo que lhe causasse qualquer coisa. Pois Guns nada sentia.
Os pais de Guns eram religiosos, mas ele próprio tomara o desagradável caminho que os decepcionara. Era impossível servir o deus deles. O deus que promete salvar, contanto que você só ouça música gospel, não beba cerveja e nem use tatuagem ou irá queimar num fogo para sempre dentro de um buraco. E era estranho perceber que eles estavam dispostos a viver pra sempre no paraíso desse deus sabendo que o próprio filho estaria sofrendo eternamente em outro lugar.
Suspirou fundo e deixou que os pensamentos fossem embora, afinal não conseguia compreender. Se a mãe era tão íntima e totalmente devota a esse deus que cuida e protege daqueles que fazem o que ele quer - por que ela está com cancer?
Mas Guns de fato nunca fora ateu. Acreditava em algo que talvez um dia fosse se revelar. Ele esperava por esse dia e, no fundo do coração, suspeitava que fosse ser algo muito melhor do que seus pais imaginavam. Ou talvez a maldade desse deus teria uma explicação coerente que expandiria a sua mente.
No mais, torcia pra que esse dia chegasse logo ou enlouqueceria.
Quando abriu o portão foi recepcionado pela casa em clima pesado. Subiu a passos lentos ouvindo o ranger dos degraus e foi devorado pela porta. Na penumbra, viu o pai desabado na poltrona. A televisão estava fora do ar e o chiado, por mais contínuo, aprofundava-o em seu sonho de dias tranquilos.
Guns permaneceu intacto onde estava, meditando na hora em que a família caíra naquele precipício. Dias atrás a casa cheirava a lustra móvel, café e janta recém preparada, envolvida por canções religiosas e o som do noticiário ou de conversas acaloradas de visitas. Hoje, somente o silêncio obscuro por trás do chiado da TV.
Não soube quanto tempo ficara perdido nos próprios pensamentos. Quando tirou os olhos do chão, o pai o observava, exausto, sem mover qualquer parte do corpo.
— O senhor está bem?
—Não consigo dormir no quarto.
Guns balançou a cabeça.
—O senhor pode dormir na minha cama.
O pai nada disse, apenas levantou-se, com todo o seu corpo travado dando estralos. Suspirou e desapareceu na escuridão do corredor. Guns preferiu não se perder nos próprios pensamentos novamente e desabou na poltrona dele, sentindo-a ainda quente, e percebeu que os braços da mobília estavam molhadas. Lágrimas. Desviou os olhos para o corredor para examiná-lo vazio, e tão vazio quanto os caminhos de alegria da sua mente. E não soube decifrar o quão difícil aquilo estava sendo para o pai. E vez ou outra, a tristeza tornava-se pesada, condensada, e se transformava em raiva de Deus.
E outra vez se percebeu perdido nos pensamentos e a estranha sensação de estar sendo observado lhe trouxe de volta com um arrepio que fez estremecer cada músculo das costas. Olhou em volta, ninguém. Aquela compulsão muito o tomara nos últimos dias e a única explicação coerente e que se encaixava à sua visão de mundo era descargas involuntárias do cérebro devido ao altíssimo nível de hormônio de estresse sendo liberado em seu corpo graças aos dias difíceis.
Seu amigo da banda porém lhe disse que possivelmente algum espírito queria entrar em contato. Mas essa era a visão religiosa dele. Um cara que acreditava em infinitas reencarnações em busca de um objetivo, pagamento de dívida de outras vidas e contato com mortos que invadem seu corpo e ficam pedindo cachaça e cigarro. E Guns não suportava a ideia de ser escravizado por uma crença. No mais, se essa crença viesse acompanhada de uma mensagem de cura para a sua mãe, aceitaria resetar tudo o que pensava sobre a vida.
Retirou o notebook da mochila e imediatamente digitou no Google: cura para o câncer. As lágrimas se empoleiraram nos olhos e Guns percebeu que molharia a mobília também.
Notícias que divulgavam futuras vacinas, grandes descobertas em outros países, promessas de que o câncer seria extinto em trinta anos inundaram a sua tela. Num site, algumas pessoas que testemunhavam o próprio processo de cura. Foi então que uma remota esperança iludiu seu coração. Anotar todas as principais semelhanças entre as pessoas que foram curadas. Nem que para isso tivesse que virar a noite, dias, semanas, ou enquanto a mãe ainda respirasse.
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Lágrimas no Éden
Ficción GeneralDe repente, Guns descobre que o que chama de Terra é na verdade uma ilha assistida como um reality show selvagem pelo restante da população ultra desenvolvida do planeta. E o que ele nunca poderia imaginar é que alguém de lá estaria apaixonada por e...