Capítulo único

9 1 1
                                    

Eu não valia muito quando vocês chegaram. Sei que ouviram por aí o porquê. Mesmo assim, não se importaram.

"Faremos um trato com a assombração, se aparecer. Tudo se resolve numa boa conversa."

Que alegria foi ouvir isso. Vocês pareciam perfeitas para mim, irradiavam esperança. Eu podia ver que éramos iguais. Vocês também possuíam suas manchas e rachaduras. Mas tinham energia, estavam lutando para recomeçar e havia muito amor. Uma vontade uma da outra que me aquecia e iluminava.

Talvez eu também pudesse recomeçar.

No entanto, lamento dizer, vocês não entendiam nada de assombrações quando puseram seus pés em meu assoalho pela primeira vez. E eu queria que tivessem se lembrado de que tudo se resolve numa boa conversa, anos mais tarde.

Ainda que eu fosse a casa mais barata do quarteirão, levei todas as suas economias. Lamento por isso também, sei que ajudou a trazer os problemas.

De todos os que já me habitaram, o início de vocês foi o que mais me comoveu. Me deu esperanças de que dessa vez daria certo e poderíamos todos ser felizes.

Antes de vocês, eu fui o lar de um homem solitário que me via como um enorme canteiro. Ele tornou meu quintal um depósito de terra adubada e saiu plantando tudo de mais extravagante viu pela frente. Ganhei três árvores incômodas cujas folhas se espalhavam para além do telhado e do muro do vizinho. As raízes causaram um belo dano ao chão de concreto. Extinguiu meu espaço amplo e acabou com a visibilidade.

Ele nunca cuidou de verdade de mim, nunca dedicou um centavo para qualquer coisa que não fosse terra, minhocas e sementes. Um belo dia fez as malas, trancou tudo e partiu. Fiquei sozinha, abandonada. As crianças e adolescentes dos arredores passaram a fazer de mim o que queriam, virei um esconderijo, um playground, um chamariz para aqueles que queriam ter conversas secretas ou encontros românticos — as vezes nada românticos.

Meu telhado foi atingido por marimbas de todo o tipo e sem ninguém para reclamar por mim, acabei com algumas telhas rachadas. Fui escalada e invadida. Rabiscaram e sujaram minhas paredes, portas e janelas. Minha fachada era uma sujeira só. As plantas que não morreram, por sorte de alguma chuva, me tornavam um cenário ainda mais caótico. Por dentro, eu era só escuridão, poeira e cheiro de guardado.

E as coisas que nem se davam ao trabalho de cochichar sobre mim...

"Essa casa é horrível, a mais feia da rua todinha."

"Deve ter alguma coisa errada para ninguém querer ficar nela."

"Eu não viveria aí nem que me pagassem."

Foi, com certeza, um dos meus períodos mais sofridos e traumáticos. Eu achava que nada podia ser pior do que a vida de casa vazia.

Até conhecer vocês.

Por fim, meu proprietário me alugou para um senhor debilitado. Esse então não tinha mesmo a menor condição de me despender qualquer dedicação.

O idoso fora um matemático brilhante com o hobby de construir e consertar bugigangas em seus tempos de ouro. Ele tentou manter isso até o final de sua vida, o que sinceramente, só me rendeu a aparência desordenada de uma espécie de oficina ou garagem de acumulador.

Um parente aparecia vez ou outra, apenas para lhe dar comida, conferir se ainda estava vivo ou mandá-lo parar de telefonar toda hora. Acho que ele não teve sucesso em cativar as pessoas quando jovem. Ninguém tinha o interesse de me passar uma vassoura e ele não tinha forças para tanto, ainda se quisesse. Conforme seu estado de saúde foi deteriorando, levou a sanidade consigo.

A casa que vocês destruíram [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora