Solitário. Assim era o caminho que Kal percorria até o trabalho todas as manhãs. O bairro era humilde, assim como o espírito do jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. A viela fazia-se de terra batida. Entretanto, algo se destacava naquele cenário: uma clareira, coberta por uma densa aura.
Por vezes, Kaleo ficava admirando a estranha e opaca paisagem vazia. A massa de árvores baixas era encurralada por ervas daninhas, enegrecidas pelas sombras.
Numa determinada tarde, enquanto servia alguns cafés a meia dúzia de clientes habituais, Kal notou um par de olhos por detrás da vidraça embaçada. Eram os olhos mais lindos que já vira. A camada de gordura e poeira na superfície lisa não o impedia de admirar as pequenas esmeraldas curiosas que espreitavam o interior do recinto.
― Tenha cuidado, rapaz ― alertou o cliente, evitando que Kal derrubasse a chávena instável que segurava. ― Muitos jovens já estragaram suas vidas por um par de olhos como aquele. ― O garçom não conteve o riso, sem levar a sério o aviso.
Ao voltar para o balcão, notou um pequeno cartão sob o porta-guardanapos. A escrita metálica, e em alto relevo, cintilava de diferentes tons com a luz pálida proveniente das janelas: "Souls' Park"; e, logo abaixo, "Venha viver o seu pior pesadelo". Só então ele lembrou-se de que estavam se aproximando do Halloween.
O rapaz achava estranho que as pessoas gostassem de brincar com almas penadas. Não que acreditasse na existência de assombrações vigiando o sono dos mortais, mas mais-valia jogar pelo seguro. Contudo, Kaleo deu por si a girar o cartão entre os dedos numa busca, em vão, pelo endereço do parque.
O retorno para casa foi feito na companhia de Luca, como já era hábito. Os dois sempre acabavam por seguir o caminho mais longo, aquele que não envolvia clareiras inóspitas. O itinerário agradava especialmente o loiro, que certamente nada tinha a ver com a paragem, quase obrigatória, no pub.
Entre uma bebida e outra, o assunto do parque acabou surgindo, inevitavelmente. Luca foi apanhado de surpresa, tanto por ver o melhor amigo interessado no Halloween, como pela referência a um novo parque temático na cidade. Kaleo bem que procurou, mas acabou desiludido ao perceber que tinha os bolsos vazios. Não teria como provar do que falava.
Era véspera de Halloween. A noite estava mais escura do que de costume e Kal caminhava distraído, sem se atentar nesse simples pormenor. Luca havia-o trocado por uma "ruiva sedutora", parafraseando as poucas palavras da mensagem do amigo. Isso fez com que o garçom acabasse por optar pelo itinerário mais curto, aquele que não envolvia um pub mal frequentado.
Uma claridade repentina tirou-o de seus devaneios. A luz brotava da bifurcação mais à frente. Como um verdadeiro vaga-lume, Kal virou na curva à direita e avistou o enorme letreiro pendurado entre duas hastes de madeira. "Souls' Park", as letras destacavam-se em néon.
No horizonte, a roda gigante resplandecia, deixando-se antever ao fundo da clareira. Toda uma enorme estrutura tomava conta do local. Mas ele podia jurar que, de manhã, não havia nada ali.
A cabeça de um palhaço gigante, com dentes ferozes e pontiagudos, disposta à frente do túnel da entrada do parque, parecia encará-lo em desafio, de forma quase provocadora.
Um arrepio percorreu todo o seu corpo, quando ouviu a voz aveludada.
― É incrível, não? ― O rapaz esquivou-se. ― Me perdoe, eu não quis assustá-lo.
Os olhos... Kaleo não conseguia acreditar que aqueles olhos magníficos lhe sorriam novamente.
A jovem trajava um vestido branco de cetim. O caimento era perfeito em suas curvas acentuadas e os cachos definidos deslisavam sedosos sobre o tecido. Os cabelos oscilavam entre tons, não se fixando em um só, e exalavam um cheiro inebriante.
― S...sim ― gaguejou. ― E tudo em menos de um dia.
― Somos muito caprichosos. Você não faz ideia... Toma, é meu convidado. ― Ela entregou-lhe um ingresso. ― Esteja aqui amanhã, às 23:45. E não se atrase.
― Qual o seu nome? ― Kal quis saber antes de partir.
Ela balançou as ancas, sedutora, enquanto encurtava a distância entre os dois. O corpo dele retesou-se ao senti-la tão perto. Os lábios macios pressionaram docemente a face esquerda do rapaz. A mulher sorriu ao percebê-lo paralisado e subiu a boca até raspar, ao de leve, no lóbulo da orelha.
― Volte amanhã e poderá descobrir ― sussurrou.
731 palavras
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Souls' Park
RomanceA aura enigmática da clareira inóspita de seu bairro, nunca assustara Kaleo, muito pelo contrário. Ele sentia-se atraído por ela, mesmo que não soubesse explicar o motivo. Porém, chegaria o dia em que ele temeria por sua vida. Fascinado por um par d...