XIX

209 66 411
                                    

"Meu anjo tem o encanto, a maravilha
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pelo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto.
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte n'um desdém, n'um beijo vida,
E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!"

de Azevedo, Álvares. "Meu Anjo".

Aquele era um dia tempestuoso, aborrecido, nublado e muitíssimo gélido. O único desejo plausível de uma criatura minimante sã, é o de permanecer abrigada junto a uma fonte de calor prazerosa e aconchegante, como a chama abrasadora de uma chaminé, a maciez cálida de um punhado de cobertas ou os fios grossos de um bom agasalho. O sereno frio, impiedoso e incessante, pairava e escorria sobre as vidraças e o telhado das moradas parisienses, comércios locais e construções que circundam e compõem o panorama da Cidade Luz.

Quem possuía um abrigo que o livrasse das mazelas trazidas com a baixa temperatura, a chuva e a ventania, podia se considerar um indivíduo sortudo, mas evidentemente a "sorte" não alcançava em grande abundância todos os filhos do Criador. O inverno estava custando a dizer um último adeus ao demonstrar a sua rebeldia e negação por meio da brusca mudança de ares, que tornou o amanhecer mais preguiçoso e o restante do tempo mais lânguido e demorado. Penoso, para quem precisava incontestavelmente se expor as mudanças e anseios da condição atmosférica vigente.

Dawson encontrava-se envolto em carícias e afagos junto aos abraços tenros e saudosos de sua amada Annie, que o aquecia e o deleitava muito mais que o torpor inebriante da lareira de formas harmoniosas em seu quarto ou da torpe fumaça de um cachimbo, concentrada em sua boca empalidecida. Era um ambiente aprazível, sem dúvidas. Estavam aquecidos, confortáveis, unidos: tudo o que ele havia desejado com avidez durante muitos meses anteriores a este dia, estava à sua plena disposição e prazer. Entretanto, o cavalheiro não estava feliz, quiçá satisfeito. Naquele momento, sentia tudo, menos felicidade.

The Secrets of a Little LadyOnde histórias criam vida. Descubra agora