Capítulo 8 - Palavras Cortantes

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      — Você sabia que aquele menino que estuda com você, Toby, também estava nesse hospital quando sofreu o acidente? — Minha mãe me disse, na manhã seguinte, quando a enfermeira trouxe meu café da manhã.

     — Não... Para falar a verdade não sei muito sobre ele.

     — Mas vocês são amigos?

     — Sim, somos, ele me ajuda bastante na escola. É divertido também.

     — Com tudo o que ele passou, teria todo o direito de ser o contrário do que você disse.

     — Verdade, e é isso que faz ele ser ainda mais especial. Faz quanto tempo que ele sofreu o acidente? E como foi?

     — Há dois anos. Tudo o que eu sei é que a casa dele pegou fogo com ele e a mãe dentro. A mãe saiu ilesa, mas ele...

     — É, eu sei, as meninas me contaram sobre seu rosto.  

     — Parece que ele já tinha saído da casa, mas quando viu que a mãe ainda estava lá dentro, voltou para salvá-la, e foi ai que o fogo queimou seu rosto.

     — Se não fosse por ele, ela...

     — Pois é, ele é um herói. Espero que estejam tratando ele bem na escola.

     — Ah, você sabe, sempre têm aquelas pessoas más...

     — Aposto que são as mesmas que te magoaram.

     — Elas mesmas. Mas eu tenho minhas amigas, e elas também gostam do Toby.

     — Bom saber.


      Ao chegar em casa no meio da tarde, pude ouvir minhas amigas conversando na sala de jantar. Elas estavam esperando por mim. Foi um fim de dia muito bom, nós almoçamos frango assado com purê de batata e subimos para meu quarto, onde eu contei para elas o que tinha acontecido. Eu não consegui não chorar, mas não tinha problema, é preciso sempre deixar toda a tristeza sair do corpo. Elas me ofereceram toda sua compreensão e apoio, me abraçando, e alguns minutos depois nós já estávamos nos divertindo de novo. Uma playlist de pop antigo estava tocando enquanto elas me contavam sobre o dia de jogo que eu perdi. Elas haviam ganhado de novo, e faltavam apenas mais três jogos para irem para a final da competição. As meninas me animaram muito, e aliviaram um pouco mais da minha dor. Mas à noite, quando me deitei para dormir, eu só conseguia pensar em tudo o que eu ia perder por estar cega.


      Uma tremenda dor atingia meu peito, sem prévio aviso, esmagando meu coração, e eu me sentia no fundo de um oceano escuro, impossibilitada de nadar para a superfície.


      No dia seguinte, tive uma discussão intensa com a minha mãe. Por causa da minha pouca visão, ela me tratava como se eu fosse incapaz, e isso sempre me trouxe um sentimento de invalidez muito forte. Ela também largou seu trabalho, o qual eu sabia que ela amava, para poder ficar comigo nas horas em que eu não estava na escola. Eu sei que no começo eu realmente precisava de uma atenção a mais, porque eu mesma não me sentia capaz de me virar sozinha, mas o tempo foi passando e eu fui ficando cada vez mais independente com a visão embaçada. Eu ainda recebia ajuda das pessoas, mas não era como se elas tivessem que me vigiar o tempo todo, como minha mãe fez por todos esses anos. "Uma coisa era você ver mal, outra coisa é você não ver absolutamente nada", essas foram as palavras que ela escolheu me dizer quando eu questionei sua superproteção. Ou seja, se eu já era "inválida" antes, imagina o que eu senti no momento em que ela me disse isso. Eu fiquei tão irritada, ao mesmo tempo que não conseguia direcionar meus olhos para ela, porque não sabia onde ela estava, eu podia muito bem estar discutindo com uma parede. Me subiu uma raiva tão grande, estava tudo tão escuro, a voz dela era tão alta que a sensação de tontura me atingiu de novo. Eu só queria que aquele momento acabasse, eu só queria sumir.

     — Você não vai mais à escola! — Ela continuou.

     — O que?! Você só pode estar louca! Vai me tirar a única coisa que ainda me traz vontade de viver nessa merda de mundo?!

     — Olha o tom, mocinha!

     — "Olha o tom", nada! Eu estou cansada de você me supervisionando toda hora! Eu não posso nem respirar direito. Você quer saber de cada detalhe de tudo o que eu faço!

     — Eu estou proibida de querer saber sobre o seu dia agora?!

     — Você não faz isso porque quer saber do meu dia, você faz isso porque acha que eu sou TÃO frágil que a qualquer momento eu vou tropeçar em uma porcaria de calçada e morrer! Você acha que eu não sou capaz de atravessar uma rua!

     — E não é mesmo!

     Meu corpo inteiro ficou estático, e minha respiração parou por um segundo. O que ela acabou de dizer?

      — E você acha que eu não sei que o Elijah é seu professor? — Ela não se cansa de acabar com a minha vida. — Você é deficiente, minha filha, e ele só quer se aproveitar da situação.

     O completo escuro nunca me pareceu tão nocivo. Eu não podia fugir, sair correndo, porque eu não tinha nenhuma noção de para onde ir. Não conseguia nem ao menos andar para outro cômodo sem me esbarrar em nada.

     — Querido? — Minha mãe perguntou, e eu percebi que não estávamos sozinhas na cozinha.

     — Venha, filha — meu pai veio até mim e segurou no meu pulso esquerdo — eu te levo até seu quarto. — Ele provavelmente havia chegado mais cedo do trabalho, e ouviu o final da nossa conversa.


     — Vocês não podem me impedir de ir para a escola, pai. — Digo, ao sentar na minha cama, em um tom mais tranquilo.

     — Ninguém vai te proibir, filha, nós só precisamos fazer as coisas com mais calma. Tá bom?

     — E não deixe ela fazer nada contra Elijah, ele não me fez nada de mal.

     — Olha, sua mãe me contou que ele foi te visitar no hospital... e isso não é algo que qualquer professor faria. Ele está quase passando dos limites.

     — Vocês estão enganados sobre ele. Se disserem algo na escola, vão demiti-lo.

     — Não vamos dizer nada, por enquanto.

     — Pai?!

     — Descanse, filha, ainda tem muito para acontecer.



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