Capítulo 3 - Entrega

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Capítulo 3 – Entrega.

A verdade raramente é pura e nunca é simples. Oscar Wilde.

Belle acordou e se espreguiçou. Ainda se sentia sonolenta e seus gestos eram extremamente lentos. Alongou o pescoço, os braços e, enfim, as pernas. Bocejou e não se sentiu animada com a possibilidade de sair da cama. Sentia-se estranhamente cansada. Teve a impressão de escutar barulho de chuva, mas quando se concentrou para tentar escutar, seus ouvidos não captaram coisa alguma. Ela se espreguiçou mais uma vez e piscou os olhos com força para afastar a vontade de dormir. A aurora certamente havia acontecido horas antes e a violenta tempestade da noite anterior havia se transformado em uma leve garoa que permeava as nuvens plúmbeas do céu empoeirado. A casa parecia ligeiramente desarrumada, mais do que ela supôs que pudesse ser normal. Havia deixado tudo de ponta cabeça quando saiu na chuva para resgatar o gato? Ah! Eu havia me esquecido... O gato!

Belle começou a fazer alguns sons estranhos e a chamar o gato. - Psipsipsipsi... gatinho! Psisisisi... cadê você? – Nenhuma resposta.

Não havia pistas ou sinais da presença do felino. Um gato quando quer pode se esconder por dias e os donos acreditam que morreram atropelados ou que foram sequestrados quando, na realidade, o gato pode ter apenas se enfiado no forro do sofá ou no vão da parte traseira da geladeira ou até trocado a casa de sempre pela casa do vizinho. A angústia de Belle crescia na medida em que não encontrava evidências que provavam o sumiço ou a presença do animal resgatado. Não havia pegadas molhadas, sujeira e nem mesmo pelos escuros deixados para trás, mas como era possível? Um miado repentino a guiou até o gato que estava sentado, parado ao lado do fogão, que era preto como ele. Os olhos amarelos do felino foram de encontro aos olhos verdes de Belle e se encararam por um instante alongado, como dois iguais. Então ele miou novamente e se movimentou com rapidez e leveza até a porta dos fundos. Outro miado. - Você é esperto, não é? Está se sentindo recuperado, senhor gato? – Perguntou com uma voz amigável e um sorriso afetado. - Miau. - Está com pressa? - Miau. - Que tal morar comigo? Você estava machucado ontem e... - MIAU! – Os pelos pretos do gato se eriçaram como se o convite para morar junto com a mulher fosse ofensivo. A careta do pequeno animal era assustadora e Belle notou como eram pontiagudos os dentes do bichinho. Estava pronto para atacar. - Acho que não tem jeito, não é? Você quer ir para a rua... assim seja. – Belle abriu a porta e o gato correu para os sacos de lixo e após revirá-los por alguns instantes, olhou para a cara dela com uma determinação estranha antes de disparar em alta velocidade para a rua. – Ei! Tome cuidado! Não vá morrer atropelado, por favor!

Belle estava contemplativa e uma reflexão da noite anterior retornou. Quando pensamos nos mortos, será que eles pensam em nós? Desconhecia maneiras sobre como se explicar, porém o irmão falecido agora não saía mais de sua memória. Antes da noite anterior, do café para dois, da aparição do gato, de tantas sensações esquisitas, Belle se via capaz de ignorar certa parte de sua vida, mas agora parecia impossível. Sorveu seu primeiro gole de café na manhã de sábado enquanto fitava a mão destra. Não pôde perceber qualquer sinal de tremedeira e o vislumbre de um sorriso bailou em sua face.

- Eu deveria ter levado o gato para algum abrigo. Deveria ter encontrado um adotante responsável. Isso. Ele era meio arisco, mas é a natureza dos gatos, eu acho. Ele não pode ter culpa por ter nascido como nasceu, certo?

A campainha toca subitamente e interrompe os pensamentos de Belle, que corre até a porta e observa pelo olho mágico um idoso baixinho e uniformizado. Segura com as duas mãos enrugadas o que parece ser uma caixa. Belle abre a porta e fica frente a frente com o homem. - Bom dia, senhora. – O velho disse e abriu um sorriso amarelado. O bigode era grisalho e olheiras fundas marcavam a pele castigada pelo tempo. – Tenho essa entrega para Isabelle S. F. - Sou eu mesma. - Assine aqui, por favor. Isso. Muito obrigado, senhorita. Tenha um ótimo sábado. - Um ótimo sábado para o senhor também!

Belle entrou de volta para dentro da casa e subitamente parou. Os correios faziam entregas aos sábados desde quando? Correu de volta para o olho mágico, mas não conseguiu enxergar o carteiro. Foi até a janela com a melhor visão para rua e nada daquele senhor simpático. Era certamente incomum, mas poderia ser apenas uma coincidência? Belle pensou no irmão e tentou conjecturar sobre como ele agiria em uma situação dessas. Na verdade, o pensamento não era muito útil. Ele provavelmente riria e abriria o presente. Belle sorriu sem muito entusiasmo e notou que tinha um bilhete. Era melhor ler antes de abrir a caixa.

Parabéns, Belle. Eu não estou por perto para lhe dar um abraço e nem para cuidar de você como antes, mas eu quero que você saiba que eu estou bem. Encontrei alguém capaz de enviar essa minha carta e traduzir meus sentimentos. Não se assuste com tudo isso. Prometa que não vai ficar sozinha no dia do seu aniversário. As coisas estão agitadas por aqui, mas se possível aparecerei em breve. Não me odeie por essa ausência. Eu vou aparecer no dia 30/11/2020 e peço para que não tente me contatar antes disso.

Com carinho,

Tomas S. F.

Belle soltou o papel e abriu a caixa. Não havia nada dentro. Estava lívida. Quem achava que tinha o direito de brincar daquele jeito com ela? O seu irmão estava morto há tempos e agora alguém se passava por ele como se fosse uma brincadeira engraçada. Releu a carta sucinta e cerrou os punhos se inflamando cada vez mais. Muita coisa não fazia sentido. O carteiro entregou uma encomenda no sábado e os correios nunca funcionaram aos sábados; não havia uma encomenda e apenas uma carta; a carta estava assinada por seu irmão falecido e a caligrafia era idêntica; o suposto pedido do irmão dizia para que ela não passasse o dia do aniversário sozinha, mas conferiu no calendário e ainda era dia 24 de novembro, ou seja, o seu aniversário só aconteceria em dois dias. Se o irmão aparecesse mesmo no dia 30, ainda demoraria quase uma semana. - Diabos... O que estou falando? Eu mesma vi meu irmão deitado no caixão. Eu toquei o resto gelado dele. Eu discursei no velório dele. Eu... eu. Eu. Inferno. Quem faria uma maldade dessas? – Belle revirou a caixa e não encontrou qualquer pista, mas releu a carta uma terceira vez e notou que no verso dela havia um endereço.

Avenida Vero Távola, 667.

Agora não havia tempo a perder. Alguém lhe devia explicações sérias e teria de pagar pelo absurdo da carta. Belle pegou a carteira e se recordou brevemente que o celular estava sem bateria. Trincou os dentes sentindo ainda mais raiva.

- Deve ser coisa do gato preto. Dizem que eles dão azar... – Belle fechou a porta violentamente e trancou a casa. Saiu andando com pressa e ignorando a fraca garoa que caía naquela manhã. Só tinha olhos para o momento em que ia tirar satisfação e punir os responsáveis pela carta póstuma do irmão. – Vocês mexeram com a pessoa errada... vocês vão se ver comigo! – Belle pisou duro e saiu pelas ruas com a cabeça fervendo. Ainda nem havia conferido como chegar no endereço da carta, mas os seres humanos furiosos mais agiam do que pensavam. Ela apenas seguia para o centro da cidade como se não sentisse dúvidas quanto ao endereço. Se acabasse perdida, bastaria se informar, mas o mais importante agora é que alguém tinha que pagar. Estava tão concentrada em seus problemas que não notou quando um homem robusto saiu da rua lateral de sua casa e começou a segui-la. Assim como um cavalo com seus antolhos, Belle só tinha olhos para o que estava exatamente a sua frente. 


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O furto do Rei DiaboOnde histórias criam vida. Descubra agora