Capítulo 4 - Dieb

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Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. Bertolt Brecht.

Túlio acordou extremamente assustado e ofegante. Estava nu em sua forma humana em um apartamento qual nunca havia visto. Flashes da noite anterior iam e voltavam e sua cabeça latejava de dor. Todo o seu elaborado plano tinha ido por água abaixo quando aquela coisa gigantesca começou a perseguição. Era implacável, feroz. Túlio suava com a lembrança e a voz grave do monstro ainda invadia seus tímpanos, reverberando, expandindo. Ele sentiu uma dor excruciante na parte rasgada pelas garras da criatura e estremeceu mais uma vez. O suor que brotava por toda sua pele pingava. Túlio era acostumado a fugir de policiais, guardas e muitas vezes havia fugido de demônios medianos, ou seja, era mais do que capaz de concluir furtos e realizar missões difíceis, mas pela primeira vez em sua vida havia sido perseguido por uma besta avassaladora, que o fez se sentir esmagado. Aquele monstro apavorante se assomava em sua direção e parecia cada vez maior. Quando percebeu que a criatura o caçava, reconheceu que sua única reação natural tinha sido fugir. Poderia ser diferente? Era assim que um gato encurralava um rato? Túlio odiava fugir, todos conheciam sua fama de esquentado e brigão, mas pela primeira vez sentira um medo insano do confronto, uma necessidade de poupar a própria vida. Supôs que um predador tão voraz, poderoso e maligno pudesse ser o próprio Diabo, mas desconfiava da improbabilidade da hipótese. Túlio era, sem dúvidas, um sujeito arrogante e lhe era impossível enxergar equívocos em seus preparos. O plano era demasiadamente detalhado, fora elaborado durante longas semanas e não havia furos. Calculou antes e nas soluções até supôs que o Rei do Inferno pudesse partir atrás dele, mas não imediatamente. Não havia ainda como ter descoberto sobre o objeto desaparecido. Se os guardas do tesouro contassem sobre o furto, certamente morreriam, assim, jamais contariam e levaria alguns dias para que o Diabo descobrisse por meio de uma de suas típicas visitas de checagem. Túlio confiava na segurança das hipóteses prováveis. Os guardas morreriam apenas após a descoberta do Diabo, mas quem com a sentença de morte decretada pelo próprio Diabo iria optar por se confessar? Os demônios todos sabiam que atos heroicos não compensavam. Se os guardas admitissem o furto seriam torturados imediatamente e mortos em seguida. Se não confessassem, eles seriam torturados posteriormente e mortos em seguida. Quem tendo uma semana a mais de vida escolheria a morte antecipada? Túlio suspirou aliviado encontrando conforto em seu raciocínio. Ainda assim precisava compreender muitas coisas.

Túlio se perguntava sobre como acabara neste apartamento. Correu seus olhos pelos cômodos em busca de explicações. A memória de uma pancada estrondosa o arremessando em um beco retornou e ele sentiu novamente a cabeça e o corpo doloridos. Outro estremecimento. Qualquer lembrança de seu predador o deprimia, fustigando-o quase como um castigo físico. A voz maligna reverberou outra vez. Era como se estivesse naquela noite diante do monstro novamente. Túlio se encheu de uma coragem que não sabia que tinha, seu último recurso, seu último suspiro. Na ocasião, Túlio ergueu seu pequeno corpo felino para enfrentar o temível demônio e poderia jurar que, mesmo na escuridão, vislumbrara o sorriso perverso de seu adversário. Fora tomado por uma certeza seca e cruel: seria assassinado. Instantes antes do derradeiro confronto, porém, Túlio desmaiou. As memórias confusas o trouxeram de volta para a realidade e decidiu que tinha que encarar os fatos. Agora estava em um apartamento qual nunca tinha visto e não havia sinais do objeto furtado. Uma espécie de melancolia recaiu em seu corpo, mas ainda havia perguntas sem respostas. Se o monstro havia vencido, o que explicava que ele ainda estivesse vivo? O que havia realmente acontecido na noite anterior após o desmaio?

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⏰ Última atualização: Nov 30, 2020 ⏰

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O furto do Rei DiaboOnde histórias criam vida. Descubra agora