A dança

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Maralik era uma cidade pequena. Mais de 5,5 mil armênios viviam lá, era uma cidade encantadora, cheia de cultura e história, assim como toda a Armênia. Desde 2009, infelizmente, a cidade passou por uma seca, onde pouco chovia e muitos deixaram a cidade por conta da seca. Eu não larguei a cidade, eu sabia que algum dia uma chuva de esperança iria cair em Maralik. Uma menina foi a razão de tudo.
Era 2015, eu trabalhava e estudava em Gyumri, cidade vizinha e com muito mais recursos, eu ficava por lá, mas sem largar minha terra natal. Muitos diziam que a cidade estava "seca" emocionalmente, sem expressão e sem vida, um cemitério de gente viva. Aproveitei o fim de semana para visitar minha mãe, Arevik, e meu avô, Henrikh, que foi acometido por um câncer terminal.
- Hovik, meu filho... Seu avô tem piorado muito nos últimos meses... - disse minha mãe.
Eu suspirei, pois ao menos eu conseguia ajudar minha família. A cidadela estava sobrevivendo, não sei como. Por todo canto que eu olhasse, não via um rádio ligado, uma criança alegre ou um cachorro correndo. Eu sempre que passava por Maralik, ia dar uma voltinha na cidade, pois era o lugar onde vivi durante minha infância e adolescência.
- Aqui é um lugar morto... O pessoal aqui é só carcaça esperando a alma sair pra fora. - falei precipitadamente.
Do nada, ouvi um som familiar, de instrumentos típicos da Armênia, que me despertou uma doce lembrança, de antes da seca terrível. Era a cena de uma jovem menina dançando na rua da minha casa, ela praticava o kochari, dança armênia. Fui ver de onde vinha o som, era de uma casa. Algumas pessoas tocavam uma música própria para dançar o kochari. Quando vi a dançarina, reconheci a menina. Era Maral Saroyan, uma antiga paixão de infância minha. Nós dois dançávamos kochari, aos nossos 11 anos, mas eu era péssimo e não ligava tanto pra isso.
- Hovik? - disse a moça ao se distrair e me ver no galpão onde ensaiava com os músicos, alguns eram amigos meus.
- Quanto tempo, Maral! Não a vejo desde antes da seca!
Nós dois nascemos em 1990, a menina seguiu carreira de dançarina e fazia apresentações por toda a província de Shirak. A única gota de arte e vida em Maralik eram Maral e a banda da cidade. A menina me chamou para dançar com ela na divisa com o vilarejo de Dzorakap, no sul da cidade, em três dias. Como eu só iria na quarta-feira, aceitei o convite. O kochari tinha que ter um círculo com homens e mulheres para dançar, era lindo ver quem sabia dançar se remexendo no kochari. Mesmo que fossem só eu e Maral ali na cidade a dançar o kochari, seria incrível.
- Vai ser tão bom dançar com você, Maral. - falei, extasiado.
- Te digo o mesmo. Se Maralik está morrendo, vamos ser o que sobrou de vida.
Segunda-feira, dia em que eu dançaria após 11 anos sem lembrar um passo do kochari. A banda, Maral e eu chegamos na borda da cidade de Maralik com Dzorakap. Os rapazes e as moças começaram a tocar os ouds e bater as percussões, o sorriso de Maral era encantador. Eu estava com a alma tremendo, mas a menina era o que me encorajava. A melodia agitada acompanhava nossos pulos e remelexos doces e galopantes, era o kochari, sendo dançado por duas almas sorridentes.
Algumas crianças de Dzorakap, também abalada pela seca, viram e se juntaram a mim e Maral.
- Eu te amo, dançarina de Maralik!! - gritei sorrindo enquanto a dança era executada.
- Eu também, Hovik! Senti... sua falta durante... esse tempo... que você... esteve fora... - a menina estava até sem fôlego, mas não parou o kochari.
No momento, um bramido cortou os céus de Maralik e do vilarejo vizinho. As crianças e a banda pararam por um momento de dançar, uma gota caiu no fino nariz de Maral. Paramos também. As nuvens cinzentas se formaram diante de nós. Sim. Era um mar primordial retornando a uma terra desolada. Todos de Maralik saíram de suas casas para ver a chuva após seis anos numa seca que ceifou vidas e separou famílias. Naquela chuva, Maral e eu voltamos a dançar, de pura alegria, a banda também voltou a tocar. Por um momento, a dançarina me deu um beijo, tão intenso quanto a chuva que nos molhava. Eu retribuí o beijo com a mesma intensidade.
- Maralik estava quase morta, mas você, Maral, manteve a cidade com a mesma chama. O kochari nunca saiu de seu coração, querida dançarina de Maralik. - falei.
A menina ficou feliz e toda a cidade voltou ao normal. 25 de maio de 2015, a seca de Maralik teve fim. As chuvas voltaram com abundância, eram os pingos do infinito amor no coração da dançarina de Maralik, Maral Saroyan.
Assim o tempo foi passando, mas Maral e eu sempre dançamos kochari juntinhos. Como se nossas almas fossem uma só. Esta é a história da dançarina de Maralik, menina de aura luminosa e coração de cervo.

A dançarina de MaralikOnde histórias criam vida. Descubra agora