A Queda

392 60 34
                                    

🌙

Puxava a viseira da boina surrada a cada dois segundos enquanto assistia temeroso o clarear. Ele indicava que logo as vielas escuras por onde passava não mais estariam vazias. Estava perdido. Confuso. Nunca um só passo fora dado por si em um chão que não fosse o do internato. Crescera e vivera em um pesadelo constante, sonhando que o externo ao grande e velho portão era o que havia de mais belo. A realidade, contudo, é inevitável e impiedosa: o mundo não era como suas fantasias. Tudo lhe parecia morto e sem vida, não havia nada que o fizesse pensar numa possibilidade de sobrevivência. Sorte a sua que isto era algo que possuía maestria: sobreviver. A situação era atípica e deveras apavorante, mas o Jeon rezava para que Deus o guardasse em segurança. Agora, seu único foco era a procura de um abrigo: as temperaturas ficariam cada vez mais baixas e suas roupas puídas não o esquentariam por muito mais tempo. Tinha suas dúvidas de que alguém lhe ofereceria um lar, por isso precisaria saciá-las.

Deixando rastros na neve, andou em direção ao primeiro raio bruxuleante de luz solar que avistou, parando bem em frente deste, em busca de algum conforto. Girou a mochila e de lá tirou outro casaco, enrolando-o sobre os próprios ombros. Tapando o rosto com as mãos cobertas pelas luvas finas de tricô, expirou. E expirou. E expirou.

Começou então a ouvir o conhecido barulho de passos, ainda que abafados pelo branco abaixo de seus pés. Seu coração acelerou quando se deu conta de que precisaria pensar no que fazer sem muita demora. Não tinha relógio algum, mas podia deduzir que logo seriam 6 da manhã e o movimento apenas aumentaria. Com pisadas lentas, começou a andar enquanto a mente trabalhava em uma alternativa. Deveria achar um lar na cidade? Não... o encontrariam com certeza. Mas talvez... talvez se alguma família cativar-se por si, poderia lutar pela sua presença. Sorriu. Era improvável, sabia disso! Mas ir para outro lugar? Não sabia sequer se havia alguma cidade próxima, ou quanto tempo tomaria para chegar até lá sem comida ou água. Então, decidiu-se: precisaria arranjar alimento para prosseguir a viagem, uma viagem que muito se parecia com uma incógnita ou até mesmo um grande e imenso nada, mas ainda assim, uma viagem.

Parou em frente a uma velha estadaria e sentou-se na madeira da entrada, onde estava a porta. Havia um barril e duas mesas bolorentas, pareciam não utilizadas há um tempo - ninguém escolheria sentar-se ao frio afinal. Cobriu ainda mais o rosto com a viseira surrada de sua boina, encaixando os braços atrás da mochila ao que uma rajada de vento passara. Um tanto quanto acostumado com o frio, adormeceu ao som do ar dando piruetas em suas orelhas. Queria o verão de volta. Queria Taehyung de volta. Apesar de seus pensamentos estarem preenchidos por melancolia e a mais pura e eterna saudade, sonhou com Park. E ali, naquele lugar no fundo de sua mente, era primavera. A mais linda que já viu. O sol reluzia nos fios loiros do outro e, mesmo não vendo o próprio rosto, a sensação embriagante de se estar sorrindo era nítida. Sentia-se flutuar no ar sem controle de si enquanto ria alto e adorava, adorava aquilo. Estava embevecido. Eternamente embevecido. Não conseguia explicar, mas era como se aquela sensação o esmagasse devagar, lentamente e deliciosamente, assim como uma folha amarelada de papel. Sentia-se esmagado. Esmagado. Esmagado. Mas... mas por que era tão bom? Por que parecia tão... irreal? Nunca havia consumido uma gota sequer de vinho ou cerveja, mas sentia que talvez aquela fosse a resposta. Não eram esses os "sintomas"? Sentir-se leve, alegre e... e... aquilo. Sentir aquilo. Porque, oras, que palavra melhor para descrever o que se passava dentro de seu âmago, perdido num sonho duvidoso, do que "aquilo"? Aquilo. Um simples pronome indefinido.

Relaxou.

Se encontrou.

E entendeu. Entendeu e apreciou aquilo.

Mas, num susto repentino, só pôde sentir a dor em sua perna. Com olhos arregalados, acordou, encarando com rapidez os arredores e se adaptando ao frio que não estava presente em seus sonhos. Suas percepções ainda estavam bagunçadas, mas apesar disto se deu conta da origem de sua dor muscular: o estalajadeiro. Este o chutava emburrado, reclamando aos berros que "se quisesse ficar, que pagasse um dos quartos". Mexendo-se sozinho, levantou da madeira, curvando-se repetidamente enquanto caminhava para longe do senhor de meia-idade. Este, por sua vez, bufou, resmungando enquanto adentrava o local com uma vassoura na mão, a coluna arqueada deixando à mostra apenas os fios grisalhos e ralos no casco branco. Suspirou, aliviado. Limpou as roupas com um leve abanar de mãos e virou-se, vendo um maior movimento onde antes estava vazio. Por quanto tempo havia dormido? Não poderia ter sido mais que uma hora certo...? Isso era muito tempo. Logo logo o encontrariam e dessa vez ele talvez não tivesse a sorte de ir para um hospício. Cobrindo o rosto com o cachecol fino e a testa com sua boina, deu o primeiro passo, os olhos presos no branco em seus pés. Era isso. Precisava agir. Começou a caminhar, levando inconscientemente a palma para o peito, apertando o tecido que ali estava com força, dando-se conta de que "aquilo" já não era mais sentido. Claro... Sonhos são malucos, não? Então, continuou.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Sep 03, 2021 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

A dona-morte não é uma mulher | Jjk + PjmOnde histórias criam vida. Descubra agora