0| prolongo

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Faith Rosemore

Dois anos antes

O banco em que eu estava sentada era desconfortável.

As minhas costas doíam.

Os meus lábios ressacados ardiam.

As minhas pernas estavam dormentes.

Os meus olhos pesados estavam rodeados por olheiras negras.

A minha cabeça doía mesmo neste silencio corroído, apenas pelo chiado do motor velho e das rodas contra a estrada de alcatrão.

Na janela ao meu lado o céu negro permitia-me ver o meu reflexo.

Eu era a imagem do completo desastre. Se confusão tivesse uma expressão facial teria a minha.

Os meus olhos...

Os meus olhos cinzas...

Os nossos olhos cinzas...

Como era possível odiar tanto uma cor? Como era possível odiar tanto algo teu?

Os meus olhos, tão diferentes do que eram á uma hora atrás...

Eu era muito diferente do que era á uma hora atrás.

Eu não sabia como uma pessoa podia mudar tanto em horas, minutos, mas eu sabia, ao encarar a imagem no vidro que me encarava de volta, que eu não era, e nunca mais iria ser, quem eu era á uma hora atrás.

O ressonar leve da minha mãe roubou a minha atenção.

Ao encarar a sua face tão parecida á minha sem, finalmente, aquela ruga entre as sobrancelhas eu respirei fundo. A sua expressão tão serena trouxe-me um leve sorriso.

Á quanto tempo ela não dormia assim, tão tranquila?

Á quanto tempo ela se sentia assim calma o suficiente para ressonar levemente enquanto dormia?

Ao nosso redor algumas pessoas estavam sentadas nos bancos almofadados do autocarro, poucas em comparação ao início da viagem, quatro dias atrás.

Aos meus pés estava uma pequena mala com poucas roupas escolhidas ao acaso e em poucos minutos para a escolher.

As minhas mãos ainda tinham manchas vermelhas por debaixo das minhas unhas, no único local que não consegui alcançar com sabão e esfregar até a pele ficar vermelha e irritada.

Mas nada disso importava porque sobrepondo tudo isso, a minha mãe, ao meu lado dormia tranquila entre suspiros. O meu peito apertou com os flashes das imagens de dias atras.

As poucas pessoas que vinham connosco até este ponto da viagem dormiam também. Apenas eu não conseguia dormir com a minha mente a mil.

A promessa de um novo começo cada vez mais perto, uma nova vida que eu quase podia sentir a cada metro que avançávamos e o medo pelo passado que deixávamos e ficava cada vez mais longe, mas assombrava os meus pensamentos.

A euforia misturada com incerteza estava impregnada em cada poro, cada veia e cada respiração que saia do meu corpo.

Quatro dias de viagem pesava no meu corpo exausto.

Quatro dias separavam o meu passado do meu futuro.

Quatro dias atrás existia uma versão muito diferente de mim. E há quatro dias atrás essa versão de mim, morreu.

Quatro dias separavam a menina que eu era desta pseudopessoa que estava sentada neste banco desconfortável, rodeada por estranhos e a pessoa mais importante que existia neste mundo. 


 

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