Dizem que se você passar a primeira neve do ano com a pessoa amada, seus sonhos irão se tornar realidade.
Pelo menos é o que contam os jornais e os programas de rádio durante essa semana inteira, desde que a previsão do tempo começou a apontar com uma precisão e certeza absurda para uma possível queda de temperatura na noite de hoje e a aparição da tão esperada primeira neve do ano. As pessoas parecem animadas, principalmente os casais, e esse momento não podia acontecer num dia mais ideal para capturar a atenção do maior número de pessoas possível. Com certeza as ruas da cidade que não dorme estarão cheias de gente à espera.
Ainda não entendo muito bem como esse acontecimento pode ter um sentido tão romântico na tradição coreana. Em todos os meios de comunicação são reservados alguns minutos finais de alguns programas para falar sobre sua chegada e a renovação dos ânimos nessa noite de sexta-feira. "Se você seguir a tradição hoje, tudo dará certo", é basicamente a forma como isso soa, mas, para mim, é apenas mais uma oportunidade perfeita para terminar a noite com o coração partido caso a sua pessoa amada não corresponda aos seus sentimentos – já que também nos encorajam a nos declararmos enquanto estiver ocorrendo esse momento de contemplação. Então, no final das contas, pode ser meio triste exatamente como noites frias, cobertas por um ar denso que faz fumaça branca sair pela boca, devem ser.
De qualquer forma, felizmente, acredito que estou prevenida contra essa situação constrangedora e contra uma noite regada a lenços umedecidos e nariz entupido – bom, quanto a esse último, pelo menos garanto que não será por causa de um coração partido. Minha sanidade está alta o suficiente para não usar o telefone do trabalho (pois o meu há pouco descarregou) e ligar para ele em uma noite como esta. Para falar a verdade, nesse momento estou mais interessada em controlar meus instintos primitivos e não arrancar das mãos da senhora Choi So Ri o pote de azeitonas verdes em conserva que ela achou na dispensa minutos atrás.
Como existem pessoas que gostam disso? Apenas o cheiro já me deixa enjoada, sem falar do gosto e do aspecto esverdeado que me faz ativar a minha Nojinho interior e simplesmente recusar a existência de tal alimento na face da terra. Em contrapartida, a senhora de idade – com pouco mais de setenta anos, mas disposição de vinte – parece estar vivendo o melhor da vida com os dedos sujos e uma expressão de êxtase que não se abala mesmo com o gosto amargo que, na minha opinião, é simplesmente terrível. Se eu pudesse desejar qualquer coisa agora, definitivamente criaria uma máquina de destruição em massa de azeitonas.
Ou talvez eu usasse meu super pedido especial para entrar na cabeça da Shonda Rhimes e fazer ela dar um jeito de trazer de volta todos os meus personagens favoritos de Grey's Anatomy. Não aguento mais sofrer.
Saindo do transe no qual fui absorta pela indignação causada pelas azeitonas mutantes da senhora Choi, sinto uma mão puxar a barra do meu casaco e torno a olhar para o senhor Si-u, que está sentado de frente para mim com um dos meus lápis de cor laranja nas mãos, pintando as flores de um pequeno jardim que ele próprio desenhou. Segundo este, é o desenho do jardim daqui, do lar de idosos, onde eles passam a maior parte do ano, às vezes, até o ano inteiro.
— Querida — ele me chama com a voz calejada e ergue o resultado final na frente do rosto enrugado e realizado —, o que achou?
Abro um sorriso quase que instantaneamente e pego o papel de suas mãos. Como ainda não sou uma pessoa fluente no idioma dele e me sinto pouco capaz de fazer um elogio mais técnico e elaborado, limito-me a responder com o básico:
— Está ótimo.
Faz pouco mais de dez meses que moro aqui. Ao mesmo tempo que foi uma decisão difícil deixar minha família e amigos para trás, no Brasil, também foi libertador poder me aventurar em um novo país e aprender mais de sua cultura – principalmente da sua arte –, algo que tenho apenas um conhecimento básico por meio dos vários dramas e filmes que já assisti. Não posso dizer que ao chegar aqui minha vida se transformou exatamente na de uma protagonista de dorama – na verdade, está bem longe disso –, mas também não posso dizer que não fiquei decepcionada quando cheguei no país e não encontrei o Lee Min Ho na primeira esquina depois de sair do aeroporto.
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Apricity
Short Story[Conto escrito para o Embaixador Secreto 2020] Passar o primeiro dia de neve do ano sozinha definitivamente estava nos planos de Aline. Ela não ligava para todo o alarde que as mídias sociais e informativas coreanas faziam em torno disso, mesmo que...