Conheci Natália antes de uma reunião com meu advogado. Eu queria processar a companhia telefônica por cobranças indevidas e estava e um pouco nervosa porque as audiências com a empresa haviam terminado sem acordo. Natália era a nova secretária do meu advogado; ela substituiu Alice, que estava em licença maternidade. Quando conheci a nova secretária, nada me chamou a atenção: era uma moça de meia altura, cabelos e olhos castanhos, normal. Os porta-retratos em sua mesa tinham fotos de duas meninas.
- Minhas filhas, ela disse.
Natália me recebeu com simpatia. Sorriu algumas vezes e fez perguntas enquanto eu esperava na recepção do escritório. Perguntou sobre o meu caso, se eu estava confiante. Certamente eu ganharia o processo, disse. A companhia telefônica estava claramente errada.
- Espero que sim, respondi.
Tive mais algumas reuniões com o advogado e antes de todas elas eu conversei com Natália. Ela falou das filhas, seus orgulhos, mas relatou problemas com os pais das meninas. “Não deu certo com nenhum deles”, admitiu. A dificuldade era fazê-los passar mais tempo com as crianças. “Pai quando dá, sabe? Li um texto na internet sobre pais que só aparecem quando podem. É o caso dos pais das minhas filhas. Mas eu sou mãe 24 horas. Acho que se tivesse algum problema na escola, ligariam para mim, não para eles. Sempre”.
Notei que Natália me contava coisas que eu não contaria a qualquer pessoa. Problemas com os ex-maridos? Por que eu deveria saber? Logo eu, cliente do escritório que ela trabalhava? Eu sempre ouvia, fazia perguntas, tentava parecer interessada. Acho que consegui, pois Natália me falava dessas coisas a cada visita.
Certo dia, quando esperava na fila do McDonald’s do shopping, abri o Facebook e tive curiosidade de procurar pelo perfil dela. Sei lá, vamos ser amigas. Encontrei o perfil, solicitei amizade, vi que ela tinha uma conta no Instagram. Adicionei também. Passei a acompanhar as fotos das filhas, as selfies, as leituras do momento, os desabafos sobre o transporte público. Natália parecia ficar o dia inteiro no Facebook – o trabalho permitia. Links de músicas, poemas, comentários, piadas. Sempre havia uma postagem nova.
Com o tempo notei que fiquei obcecada com as postagens dela. Não sou lésbica, nem bissexual; eu não estava apaixonada por ela. Estava obcecada, curiosa, querendo saber mais, do jeito que as pessoas ficam interessadas por saber da vida comum de participantes de reality shows. Natália era uma “Big Sister”, talvez. Mas eu sempre queria saber o que ela fazia, queria ver as selfies legendadas com poemas dos heterônimos de pessoa, as fotos com biquinho, as roupas ligeiramente inadequadas para algumas ocasiões, os milhares de anéis, pulseiras e colares que ela usava. Natália era meio hippie, tive essa impressão.
Ganhei o caso contra a operadora de telefone, como esperado. Parei de frequentar o escritório do advogado porque não havia mais o que fazer lá. Mas continuei acompanhando Natália, achando ridículo o número de exclamações que ela usava ao final de cada frase (em média quatro ou cinco), as milhões de hashtags desnecessárias nas fotos, o oversharing que me envergonhava às vezes. Natália parecia um animal de zoológico para mim, por mais chocante que essa afirmação possa soar. Um caso de estudo, talvez. Intrigante.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Efeito dominó
General FictionNatália, André e Lourenço são bem diferentes, mas suas trajetórias se cruzam. Como pilhas de dominós, suas convicções e certezas vão caindo.