Capítulo Dois

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Acordei com a porta da frente abrindo. Mãe. Mãe!

Saí correndo do banheiro e destranquei a porta do quarto, era como se nada tivesse acontecido, não havia nada que provasse o que aconteceu durante essa madrugada. Exatamente nada.

Os móveis continuavam no lugar, não havia marcas no chão ou nas paredes, desci as escadas rapidamente, a TV ainda continuava ligada e no mudo, os pacotes vazios de doces também continuavam ali, a porta da sala estava intocada, não tinha nada que não fosse anormal. Como?

Encontrei minha mãe na cozinha, fazendo o café da manhã, ela já havia tirado a roupa de enfermeira, também tinha tomado banho, sabia que daqui umas horas ela já estaria dormindo. Por mais que ela tentasse esconder seu cansaço eu sempre conseguia ver...

Fiquei parada na porta da cozinha olhando para ela, até que um tempo depois ela me percebeu.

ㅡ Bom dia meu anjo!

Fui até ela e beijei seu rosto.

ㅡ Bom dia mãe! Cheirinho bom! ㅡ Não sei se é impressão minha, mas minha mãe parecia um pouco aflita, como se estivesse angustiada. ㅡ Como a senhora está? Parece um pouco preocupada...

ㅡ Eu só tô com um pouco de sono e aconteceu umas coisas bem estranhas no trabalho. Que truque novo esse, o que você quer?

ㅡ Nada não, só tô elogiando o cheiro da sua comida. ㅡ Minha mãe me olhava de soslaio enquanto cozinhava.

Me sentei na cadeira e apoiei meus cotovelos na mesa, pensei no que minha mãe disse sobre algo estranho no trabalho e a curiosidade bateu logo. Acho que ser curiosa é uma maldição, acho que às vezes pode até ser mesmo comparado com intromissão, mesmo não sendo.

ㅡ Mãe, o que foi que aconteceu de estranho no seu trabalho?

ㅡ Bem, como eu posso dizer... Eu já lidei com muitas coisas no meu trabalho, como gente com o braço quebrado ou baleada ou esfaqueada, mas hoje foi diferente.

ㅡ Diferente como? ㅡ Perguntei com interesse.

ㅡ Hoje quase no final do meu expediente, um homem chegou às pressas carregando um garota, eu fiquei paralisada nunca tinha visto aquilo, não sei se é pelo fato de que antes morávamos no centro da cidade, mas ela parecia ter sido atacada por um urso.

ㅡ Mas aqui não tem ursos...

ㅡ Então, por isso mesmo que achei estranho, lobos aqui tem, isso é certo, mas ursos não, ela estava com marcas de garras enormes, era horrível de se ver. Em algumas partes dava pra ver o osso dela, era macabro e ela se parecia muito com você, quando ela chegou eu jurava que era você, por isso eu paralisei, o meu coração parecia que ia sair da boca, ela tinha o mesmo cabelo preto ondulado que o seu, até a pele de vocês era parecida, branca como o leite, bom... A dela não estava tão branca assim... Mas a semelhança era inegável. Ela morava num bairro aqui próximo, o pior é que o pai garantiu ao xerife que ela estava dormindo no quarto, ninguém sabia se ela tinha fugido ou algo do tipo, mas ele tinha absoluta certeza que ela estava dormindo, ninguém sabia explicar o que ela fazia na floresta. É ruim até de lembrar, ui! ㅡ Na última frase minha mãe se tremeu, como se fosse vomitar, até eu mesma tinha um pouquinho de ânsia só de imaginar...

ㅡ Acho que foi informação demais e acho que perdi a fome...

ㅡ Nada disso mocinha, você vai comer sim, não fiz a comida de besta ㅡ Disse ela botando um prato cheio na minha frente. ㅡ É melhor comer tudo!

Fomos pra sala, algo que tínhamos em comum era o fato de que não gostávamos de comer na cozinha, e a cozinha fica bem longe da TV, e nós como fofoqueiras de plantão não gostamos de comer em silêncio, estamos sempre falando sobre algo ou assistindo algo ou ouvindo algo. Compartilhamos da mesma curiosidade.

Depois de estarmos nos nossos devidos lugares, ela ligou a TV, no mesmo momento passava o jornal local informando a morte de uma garota.

ㅡ Olha! É a menina que eu te disse quase ainda agora! ㅡ Disse minha mãe apontando freneticamente o dedo para a TV.

"Garota de dezessete anos morreu na madrugada de hoje vítima de um ataque de urso. Depois de darem entrada no hospital a garota não resistiu e faleceu devido a perda de sangue. O xerife e mais vinte homens procuram pelo urso neste exato momento" ㅡ A repórter foi em direção a um homem e começou a lhe fazer perguntas.

"Senhor, soubemos que foi você quem levou a garota até o hospital, como a achou?" ㅡ Depois disso não prestei mais atenção no jornal.

Olhei pra minha mãe horrorizada, sabia o que tinha acontecido, mas não sabia que tinha sido tão terrível assim! Fiquei olhando para o meu prato até voltar a minha atenção na TV, o final da reportagem já chegava e nela mostrava a foto da garota que faleceu, se minha mãe não tivesse dito sobre nossa semelhança eu não acreditaria, ela parecia ser uma sósia minha.

Minha boca se abriu em um perfeito "o", olhei pra minha mãe com os olhos arregalados.

ㅡ Viu? Eu disse, a semelhança é incrível!

Depois de tomar café da manhã subi até meu quarto, quando passei pela porta notei que numa parte dela estava um arranhão e no tapete em frente a porta havia uma mancha preta ou melhor uma poeira negra, mal dava pra ver já que o tapete é peludo e marrom, mas ainda assim eu vi. Então foi real.

FOI REAL!

A garota, será que aconteceu o mesmo com ela? Mas por que só pegou ela e não a mim também?

Minha curiosidade tinha de servir de alguma coisa. Eu ia descobrir o que tinha acontecido.

Procurei na internet sobre o caso, mas ninguém havia publicado nada na plataforma do jornal da cidade, então fui em busca do jeito mais antigo, peguei a bicicleta e fui na banca mais próxima, só que essa "banca mais próxima" ficava um pouco longe. Porque cidade pequena tem de ter as coisas tão longe? Pedalei durante uma hora atrás da bendita banca.

Por um milagre eu achei. Na primeira página tinha a foto da menina, fui até um banquinho próximo e me sentei, comecei a ler mas não tinha nada de interessante, boa aluna, ótima filha, criada pelo pai, a mãe havia morrido há sete meses, esse havia sido o quinto ataque de urso nos últimos cinco meses. A garota havia feito 18 anos no dia de sua morte. Isso é bem estranho...

Ainda curiosa com tudo isso, fui atrás de mais coisas que provassem que ela tinha alguma ligação com o que aconteceu ontem. O que me restou foi ir até a floresta. Enquanto pedalava pelos limites dela, vi muitos carros indo embora do lugar, era hora do almoço afinal. Quem em sã consciência ficaria pra almoçar em um lugar onde há um suposto urso?

Esse era o momento, escondi a bicicleta no meio dos matos e entrei floresta adentro. A trilha era fácil de se seguir, muitas pessoas haviam pisoteado o caminho, e ficou óbvio pois as folhas estavam com resquícios da poeira negra, o final do caminho dava até uma árvore não muito grande pois as outras eram muito maiores. Todas as outras árvores possuíam a copa verde e de tronco marrom ou caramelo, já a menor seu tronco era branco e a copa vermelha, como se fosse sangue e osso.

Uma parte do tronco estava cheio do que parecia ser o sangue da garota e adivinha só? Mais poeira negra. Enquanto olhava algo me chamou a atenção, muito mais a frente havia outra árvore do mesmo jeito e com a mesma cor, quanto mais olhava, mais percebia, no total tinham seis árvores dessa, cinco de copas vermelhas e uma única árvore era totalmente branca.

As seis árvores formavam um círculo, e com um pouco mais de cuidado notei que nelas haviam iniciais. Elas eram numeradas pelas letras do alfabeto, na que eu estava era marcada pela letra B, seguindo para a letra C, D, E e F, a única que não possuía letra era a árvore branca.

O vento começou a soprar forte, mas nem uma folha das árvores de copa vermelha se mexia. E então elas pareciam gritar com a força do vento, começou baixo, mas as vozes foram se levantando e repetiam sem parar.

ㅡ VÁ EMBORA! VOCÊ MORRERÁ COMO NÓS TAMBÉM MORREMOS! VÁ EMBORA! ㅡ As vozes eram de várias mulheres, gritando em coro.

Não esperei um segundo a mais e corri desesperada para fora da floresta, pingos de chuva molhavam meu rosto e que logo se tornariam o início de uma tempestade. Pedalei como se minha vida dependesse disso, porque realmente dependia...

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