A cena e a exibição pública

43 3 2
                                    

Lizzie 

Em uma escada de um prédio público, um lugar com pouca iluminação, dentro de um beco, tudo o que eu consigo fazer é olhar fixamente para aquele homem posto a minha frente. Apesar de mal conseguir respirar pela excitação de ser vista, não desvio os olhos dos dele. Suas mãos estavam ao lado da minha cabeça e seus lábios praticamente encostados aos meus.
Seu terno, com um grande casaco vestido por cima, o deixava ainda maior. Invadia todo o meu espaço pessoal e estava com o rosto separado do meu apenas por centímetros. Seus olhos tinham uma cor de whisky, meio amarelado. Ar felino e predatório. 
Sua boca estava tão próxima que eu conseguia sentir seu hálito quente, com cheiro de café e hortelã. Não consigo disfarçar o sorriso acanhado. Estamos de pé, um em frente ao outro, separados apenas por nossas roupas. Corpos colados e certamente inapropriados para o ambiente. 
Mesmo num dia de muito sol, não usava óculos escuros. Com os olhos estreitos, piscou algumas vezes antes de abaixar os olhos nos meus. Muito devagar, uma das mãos me toca com delicadeza e afaga meu rosto. Muito suavemente, contorna meus olhos e prende um dedo na mecha do meu cabelo, enrolando-a sem pressa. Inclinou o rosto e seus olhos continham curiosidade. Seu dedo indicador contorna meus lábios pintados de carmim, de forma lenta, como se seguisse o desenho deles. Seu cabelo claro e liso cai sobre a sua testa, bagunçado e displicente. 
     Passa o polegar e roçando meus lábios com mais vigor, esfrega o batom na minha boca e, entredentes, fala num tom muito baixo e contido:
— Abra a boca pra mim, por favor.
Por alguns segundos, resisto, mas sou arrebatada por um apetite tão intenso que sinto as minhas pernas falharem, mais uma vez analiso a possibilidade de ser vista o que me faz congelar. Olho ao redor me desconectado momentaneamente do meu executor.  Sua voz mais alta e áspera me traz de volta.
— Abra a boca pra mim, Lizzie!
Ele pronuncia essas palavras agora um pouco mais urgente. O que me causa arrepios.
— A-B-R-A  A  B-O-C-A  A-G-O-R-A.  
Após me sentir incapaz de controlar a minha respiração bastante ofegante, eu tentava diminuir os pequenos sopros, com medo de se tornarem chiados. Meu corpo sacudia de forma violenta.
Finalmente, abri os lábios que estavam secos e trêmulos. Ele abriu um sorriso satisfeito e dominante, e me disse como eu era linda. Só consegui me concentrar em sua voz, grave e baixa: quase hipnótica. Naquele exato momento, ele enfiou dois dedos dentro da minha boca e eu os chupei, mesmo sem ele ter solicitado. Fecho os meus olhos sentindo o gosto salgado dele enquanto ele pressiona a sua ereção em mim, o que faz com que eu me aperte contra ele.
Todas as células do meu corpo são tomadas por uma ânsia tão violenta e aguda que me escapa um gemido curto. Ele retira os dedos da minha boca e passa sobre a minha boceta, muito devagar, fazendo pressão até me levar ao limite, mas, de repente, para tudo. Suspiro frustrada. Após as suas mãos segurarem meus punhos no alto da cabeça com muita força, sinto a sua língua dançando pelo meu pescoço. Relaxei e comecei aos poucos a sintonizar a minha respiração com a dele. 
Uma cena no mínimo inusitada. De repente, escuto passos e reparo num homem se aproximando e percebendo toda aquela situação, com a sua atenção desviada para a aparente brutalidade que estranhamente paralisa seu caminhar e o faz parar. Vejo ele olhando fixamente para as mãos do homem que apertava meus pulsos e a outra agarrada na nuca, num aperto forte demais que parece me machucar. E machucava. Era impossível desviar os olhos. Tem algo naquele homem que arrepia até a espinha.
 Imagino se alguma coisa o faz pensar se deveria intervir ou somente continuar a olhar, entre o medo aparente nos olhos ligeiramente arregalados e o fascínio. Estou consciente da sua presença  que caminha para mais perto, imagino se o voyer pode escutar trechos entrecortados do meu amante falando comigo. Nosso diálogo sórdido alcança seus ouvidos aguçados?  São  pedaços soltos, seguidos de grunhidos violentos, palavras explícitas.
Uma mulher encostada na parede, aparentemente bem menor e mais fraca, com as saias suspensas no alto das coxas, calcinha na altura do joelho, pernas entreabertas.  Olhos fixos e pupilas dilatadas. O homem muito alto e forte encaixado entre minhas pernas, agora tem uma mão entrelaçada nos meus cabelos longos e vermelhos, e a outra agarrada na minha garganta. Ele sussurra coisas desconexas, sendo cada vez mais agressivo. São sons indefinidos impregnados de algo grave pra você. Pra mim é o jogo que compartilho com meu acompanhante. 
De relance, vejo os seus olhos de espectador agudos me observando e estranhamente isso me diverte. Você tenta se aproximar ainda mais, mas para e permanece estagnado. Nossos olhares se cruzam novamente, observo a sua oscilação, seu corpo pendendo na dúvida, sua cabeça ferve, suando pela indiscrição. Na minha imaginação tudo que vejo é desejo refletido em seu olhar. Excitante. A situação é absurda, mas assisto a inconveniência o vencer de novo. E continuo imaginando o que se passa na cabeça do curioso homem que agora estava numa situação ilícita, junto comigo e meu focado amante. Sinto a adrenalina me transportar para outro lugar. 
O medo de ser pega e a consciência do meu ato clandestino só aumentava a dissociação que eu sentia. Aquela não era eu. Jamais arriscaria a minha carreira e tudo aquilo que eu construí sendo pega em uma situação ilegal e pervertida. Eu não posso, não devo, mas não consigo controlar. Não posso parar. Mas era isso o grande “lance”... quanto mais obscuro, maior o risco, e mais viva eu me sentia. 
A adrenalina e o perigo amolecem minhas articulações e enuviam minhas ações, mas a promessa do que vem depois, do prazer infindável, me faz romper barreira por barreira de sanidade e as linhas divisórias do certo e errado se misturavam, numa dança perigosa e sem limites. Olho então para aquele espreitador. 
Sinto lágrimas escorrerem dos meus olhos, borrando o meu rosto e pintando-o de preto. O voyeur na verdade, mal olha para meu acompanhante. Virei seu foco de desejo. Nos olhamos enquanto me ajoelho e encosto meus joelhos trêmulos no chão sujo e frio. Seguro o pau duro do meu algoz com tanto desejo e vontade, que ele joga a cabeça para trás. Liberando um urro e rapidamente goza na minha boca. 
Me levanta pelos braços e me beija a boca delicadamente, limpa com ternura as lágrimas misturadas com as manchas negras do rímel. Passando as pontas dos dedos pelo meu rosto, fascinado e sorri, beijando meus olhos com satisfação. Se ajoelha e, tirando um lenço do bolso interno do paletó, cospe e o esfrega nos meus joelhos sujos pelo asfalto, limpando-os. Antes de se levantar, chega perto do meu sexo e inspira profundamente. Sua garganta faz um som gutural.  
— Você é cada vez melhor. Seu cheiro é viciante, Elizabeth.
Levanta-se e a voz dele sai macia de sua boca, ele estava leve e relaxado. 
— O risco te excita, né?! — continuou como se falasse mais para ele mesmo. Vejo o olhar dele passar pelo observador como se ele não estivesse ali.
— Seu rosto e pescoço ficam com um tom adorável e rosado, seus olhos fixos e seus mamilos denunciam a excitação por trás de tudo isso. Além  dessa sua mania de morder os lábios. Sua respiração muda, o seu desconforto é delicioso de assistir, e a forma que você expressa cada sentimento pelo seu corpo. Me encanta sempre, desde a primeira vez.
— Agora vamos, tenho que te dar algo para comer — determina. 
Fico observando-o e pensando que essa pergunta é retórica, pois ele sabe a minha resposta. Dou um sorriso sem mostrar os dentes. Rendida naquele momento, envergonhada.
Ele  sobe minha calcinha, abaixa a minha saia alisando o tecido com carinho num sorriso brincalhão, e dá um tapa forte na minha bunda.
Me puxando pros seus braços e dando um beijo alto e estalado que irrita o meu ouvido, cochicha:
— Te ter e te ver assim, toda por mim, me excita também! Vamos, tenho um presentinho pra você. 
O rubor e a excitação me invadem de novo. Sou transportada para nossa história. Um flash de tudo que vivemos juntos, vem como fotos recortadas. Olho pra ele e me agarro em seu pescoço, dando gritinhos altos e infantis. Inspiro o cheiro de banho dele. Me sinto anestesiada.
O voyeur permanece parado, estático e surpreso. Embasbacado seria a melhor descrição pela boca muito aberta. Nossos olhares se cruzam novamente. Guardo o tom dos seus olhos verdes muito claros, como os de um gato.
Meu amante passa os braços por meus ombros e me puxa para perto dando um beijo no alto da minha cabeça, parecendo tão casto. O contraste das duas interações deixa o observador parecendo em choque, desorientado. Entrelaçamos as mãos enquanto ele me puxa para mais perto e beija os nós dos meus dedos ternamente. Assim, passamos por aquele homem devagar e displicentes. Meu amante levanta o queixo em sua direção num aceno automático, sereno e indiferente, como se nada tivesse acontecido nos últimos minutos. Dá uma piscada com ar sacana e saímos em direção ao movimento da rua. 
Olhando de relance, tenho um último vislumbre dos seus olhos confusos e excitados. Sinto um arrepio me percorrer. Dou um pequeno sorriso para aquele homem, quase imperceptível, do tipo que cúmplices costumam dar. Um sorriso de quem entende esse tipo de paixão e descontrole. Não conseguir negar ou controlar seus impulsos mais secretos e desejos sórdidos, é terrível e feio. Sim... mas é delicioso.  
Compartilhamos aquele momento e me agrada ver o brilho nos olhos daquele voyeur e por milésimos de segundo vejo um fogo ardendo, uma chama de identificação.

O Envelope Vermelho /degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora