Dante
Ela era viva, agressiva e aguda. Uma mistura inebriante para mim, que vivia numa incessante e ferrenha busca para obter o que eu queria desesperadamente: contato e conexão. Existem pessoas que quando olhamos profundamente é como se víssemos um semelhante, algo que se conecta e vira habitual, um igual. Um ponto comum na alma, como se sempre tivesse existido. Agora, minha vida se resumia àquele momento. Esse encontro que me fez sentir vivo, e não um cadáver ambulante.
Ela. Tudo agora se resume a ela. Com seus olhos expressivos e grandes. Suas danças animadas enquanto cozinha e o jeito único de se entregar quando é tocada. Meu pau pulsa em necessidade. Sinto água na boca. Ela me faz salivar. Assisti-la fazendo uma omelete de manhã me deixa fissurado, a forma leve e ágil com que segura a faca, a forma gentil e direta cortando cebola e tomate. Bate os ovos com perfeição, e pude imaginar o cheiro daquilo, especialmente o manjericão colocado no final. Ela sorria enquanto cozinhava e comia. Parecia alegre, mas desconectada. Olhos desfocados. Meu estômago apertou num sinal de fome.
Depois do que tinha assistido e participado, sabia que a queria, não podia mais me afastar. Não agora. Não depois do momento que dividimos. Aquela mulher, pra mim, era a chance de me entrelaçar com a vida real. Essa ideia fixa de repassar as imagens dela na minha cabeça, sem parar, me consumia.
A partir daí, passei o resto do meu tempo pensando na forma leve dela pisar no chão, sempre com os pés alongados, como se naturalmente andasse nas pontas, como uma bailarina. Longilínea. O esmalte sempre vermelho vivo nos pés e nas mãos. Os olhos verdes emoldurados de lápis preto com seus cílios cheios e longos. A forma como mexia compulsivamente no cabelo, ora fazendo cachos, ora prendendo-o no alto para logo soltá-los. Os cabelos davam uma áurea de leoa pra ela, vermelhos e selvagens.
Ela constantemente mordia as unhas repetindo o movimento de roer, mas sem de fato roê-las. Como se fosse um hábito de um antigo costume. Parecia constantemente ansiosa, em estado de alerta. Costumava usar roupas folgadas em casa, cortadas, e calcinhas pequenas e enfiadas na bunda. Mas, para sair de casa, ou para receber os seus amantes, era uma história totalmente diferente.
Geralmente, usava terninhos muito justos e alinhados para encontros de trabalho, ela era sócia de uma galeria cult no Brooklyn chamada Venenum Artis.
Usava sempre as cores cinza, preto, marrom, azul marinho e risca de giz na galeria de arte e em situações sociais. Sempre combinando com uma blusa branca refinada por baixo e saia lápis, acentuando cada curva do seu corpo, mas com ar mais austero. Maquiagem leve, lábios brilhantes, sem o seu vermelho habitual. Sua pintura de guerra. Uma de suas máscaras.
Os amantes ela recebia em sua casa, por volta de três homens. Para cada amante usava um estilo diferente, uma maquiagem, um sapato e uma comida. Fazia uma cuidadosa preparação que eu observava de perto, dos bastidores.
Outra curiosidade: sempre havia comida nos seus atos sexuais – antes, durante ou depois. O ato sexual alimentava a fome dela.
Para o sexo perigoso na rua, ela vestia a sua malha de corrida sem nada por baixo. Geralmente, gostava de ser rápida com os estranhos. Não os levava para o apartamento. Eram sempre encontros em público. Ela curtia o perigo de ser pega ou ser vista... observada. E depois tomava um sorvete de baunilha. Na mesma sorveteria. Como em um pequeno ritual. Eu sentia nossa sintonia nos aproximando. Estávamos nos alcançando.
Quando sozinha, tinha uma dieta baseada em vinhos, queijos, omeletes, chocolates, iogurtes e uma eventual pasta. Bebia jarras de água e tomava vários banhos por dia. Fumava enquanto pintava e bebia, e isso era a maior parte do tempo. Em duas paredes de seu apartamento, muitos quadros estavam amontoados, e ela pintava algo diferente a cada dia. Ela escrevia muito num caderno de capa vermelha, e me pego imaginando o que ela pensa, pelo que ela se interessa, o que a faz ansiar e arfar. Penso em como seria o seu rosto visto de perto, quando goza intensamente, sendo que eu não conseguia parar de me imaginar tocando nela e sendo o homem que a fizesse delirar.
Estava num frenesi solitário, e eu já abraçava minha condição doentia. Meu pau responde, e a imagem dela enquanto atingia o clímax me invade, a forma sensual e lasciva com que se tocava, com reverência, conhecimento, propriedade.
Ver seus olhos vidrados e a sua boca arfando, o gozo, o ápice. O alívio e a leveza depois, com o corpo flácido de satisfação. Era inebriante.
Minha fera indomável era uma montanha-russa de emoções, e durante o dia passava por vários humores, e mesmo sem a conhecer de verdade, gostava de achar que sentia quando algo ia ebulir de sua superfície. Tínhamos uma conexão. Ela era inquieta, sua natureza era inconstante e voltada ao caos. Ela não seguia uma rotina, e constantemente parecia desconectada das coisas à sua volta. Num mundo privativo, só dela. Era uma criatura de natureza solitária, como eu, ela habitava um universo muito particular, alternava entre o movimento constante, enquanto bebia e pintava furiosamente até quase a exaustão, para ir para um lugar distante e imóvel.
Às vezes, passava horas olhando a rua, sentada na poltrona, no chão, deitada no tapete branco e alto felpudo ou encostada na tal parede vermelha. O que ela significava? Outras vezes, parecia um animal enjaulado. Tocava as paredes como se aquilo pudesse aplacar alguma ânsia. Seu corpo sacudia, rolando pelas superfícies. Desconectada. A oscilação no corpo era quase não natural. Geralmente, cedia ao impulso e ia para a rua à caça, ou acionava um de seus amantes, sempre dispostos a atendê-la.
Blasé é a palavra que me vem à mente. Ela parece cética e aparentemente apática em alguns momentos, mas, na verdade, nunca indiferente. Seus olhos me contam as suas vivências. Creio nisso. Ela é enigmática, seu olhar carrega muita coisa dentro, muita história, muito sentimento. Olhos perturbadores. Olhos que já viram demais. Ela é um poço de sensibilidade. Como aquela criança chora! Me encanta ver a fragilidade tão crua. Mas não paro de me questionar por que tanto pranto.
Gosto de pensar que de acordo como ela move as sobrancelhas, posso perceber como está se sentindo, ou o humor do dia... as sobrancelhas dela são grossas e dão muita expressão ao rosto. Ela levanta uma delas no alto da testa como um grande acento circunflexo quando se irrita, e ela o faz repetidamente. Como legendas num filme mudo. Parece arisca, o que me faz sentir mais apreço por ela. Gostaria de saber como é a sua voz, penso nela suave e soprano, com tom melodioso e cadenciado. Cada dia, capto mais uma foto dela para o meu álbum.
Hoje, dormia no sofá com o rosto sujo de tinta, parecia cansada. Linda e exausta, minha bailarina solitária. Encolhida no sofá muito estreito, parecia frágil e pequena. A noite fria deixava o corpo dela em posição fetal. Na mesa de centro está um cinzeiro muito cheio, algumas fotos e seu caderno de capa vermelha. Sentir tudo de forma tão intensa, mesmo que de maneira momentânea é o que eu fazia, era o meu diferencial. Via que ela se dedicava a perceber os outros profundamente, se conectar e fazer com que se sintam bem. Ela vibrava por emoção e experimentar era seu vício secreto.
Era o tipo de pessoa que precisa sentir profundidade para se conectar de verdade. Os estranhos têm acesso a pedaços dela. E ela o fazia. Ela exalava intensidade e desejo, o que a cercava de pessoas dispostas a realizar a missão de provocar algo, apesar dela ter uma insatisfação crônica. Na busca incessante e perigosa pelo algo à mais…. Aquilo mágico e brilhante que ela deseja.
Ela tinha esses encontros sexuais, perturbados e escusos. Depois se desligava, seguindo em frente com uma indiferença assustadora. Eu sei disso porque já “estamos juntos” há 8 meses. Convivia alternando entre os estranhos para sexo casual e os amantes fixos, com os quais ela se envolvia dando total atenção aos mínimos detalhes, devotada. Cada amante tinha um pedaço diferente dela. Uma maquiagem, uma roupa específica, e seu próprio banquete: tinha uma relação curiosa com a comida e o sexo, seguidos da fome e da solidão angustiantes.
Depois voltava para o seu mundo de telas, vinho, noites insones e choros com gritos nas madrugadas.
Ela, claramente, não sabia se cuidar, se arriscava, e muito.
Saber de sua vulnerabilidade e de como era rondada e eventualmente engolida por predadores. Sentia cada vez mais a necessidade de tomar as rédeas da situação. Estava chegando a hora do envelope vermelho, meu ardil. Meu jogo sujo. Sorri, mesmo sabendo que era errado e egoísta, além de imoral e corrupto. Injusto e ilícito.
Existia um medo e pânico da realidade das consequências dos meus atos. O envelope significa a realidade. Estar frente a frente com ela. Eu ansiava tocar sua pele branca e macia. Sentir qual seria o sabor e o movimento da sua língua, nos meus lábios, no meu corpo, no meu pau.
Da distância da minha janela, pela lente do meu binóculo, eu tenho o controle de toda a situação, não estou exposto, não tenho que lidar com a realidade….Pânico que ela possa não me querer, não me aceitar ou me entender. Eu passo despercebido. A fera que existe nessa mulher é faminta, saberei saciar essa sede? Serei capaz de entender a vida livre que ela vive? Isso me atormenta. Torna real ela me descartar. E se ela for minha, serei satisfatório?
A doce fantasia me embalando e a realidade nua e crua perante à mim. Podia continuar, me aproximar e viver, experimentar, me arriscar. Mas no conforto da minha lente eu a tinha toda pra mim, sem reservas. Todos os seus momentos íntimos, nada me era vetado ou obscuro. Ela é disponível, aberta e possível.
Mas na amarga realidade tudo tomava outro aspecto. Hesito, repenso… passando as madrugadas insones com ela.
Dividido entre escolher e ter consequências dos meus atos. Perdido entre a decisão da realidade versus fantasia.
Entretanto, eu não jogo limpo. E estava faminto. Decidi que era hora dela me alimentar também.
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O Envelope Vermelho /degustação
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