Mais uma manhã fria e sem cor, assim como muitas outras. Um quarto desarrumado, perdido e confuso. Uma ordem em plena desordem. Um ambiente triste e importuno para muitos, pode ser um lar de paz e conforto para outros. Livro, roupas e um pouco de tudo pelo chão se encontra. Um lar temporário passa a permanente. Ninguém pensa ou sonha em tal espaço habitar, mas quando menos se espera, sem mesmo se dar conta, no meio de tal confusão estamos, e só disto nos apercebemos quando em breves momentos de pura e santa sanidade nos encontramos. É estranho mas ao mesmo tempo é algo tão familiar... Negligenciadas cortinas deixam se penetrar por dolorosos raios de sol, que despertam e trazem de volta ao corpo aquilo que chamam de alma. Um sentimento vazio pesa no peito com o regressar da consciência. A visão infernal do pesado céu azul, carregado por leves nuvens brancas invade a mente, despertando esquecidos e obscuros sentimentos. Nuvens livres e sem rumo, sem preocupação e sem destino. Ao contrário dos humanos, elas eram livres, verdadeiras e puras, com proezas de se invejar.
Era tão cedo, mas ao mesmo tempo tão tarde. O tempo corre sem por nós passar. Olhos pesados, carregados com cicatrizes de noites em claro, de mágoas derramadas pela madrugada a dentro, são forçados a abrir e olhar para o medíocre mundo que a cada dia se deteriora. Movimentos leves reabrem as profundas feridas que a noite tentará, sem sucesso, sarar. Gotas cheias deixam seu leve e vívido rastro vermelho enquanto dos abertos pulsos vão caindo. Um cabelo sem jeito e pouco cuidado por descanso implora. Expressão carrancuda, carregada de desespero, silenciosamente súplica por socorro, no limbo implora pela morte.
Cada minuto parece uma hora, cada hora parece um segundo. Uma mente vazia, blindada e perdida recusa-se a uma escolha realizar. Levantar e mais um dia viver? Deitado permanecer e mais um dia ignorar? O dever e a vontade, em sintonia nunca se encontram. O ruido do silêncio desperta uma solidão crescente, desejos negros e lágrimas agonizantes. Suspiros de uma batalha perdida quebram o silêncio, que como uma pandemia incontrolável, não para de crescer. Após pesadas lágrimas, um pequeno rio formarem junto das feridas que ao longo dos braços se expandem, sempre nos pulsos iniciando e algures, perto dos cotovelos terminando.
Já sem sangrar nem chorar, com muita dor e um forte aperto no peito, uma mão desvia os caóticos lençóis, a outra tenta limpar a trilha de melancolia deixada pelas prévias cicatrizes de um passado não tão distante. Os pés, tão gélidos quanto o chão, finalmente entram em contacto. O frio pelo corpo se espalha, dos pés até à cabeça. Sem gelar, sem arrepiar. Por mais quente que um corpo se encontre quando sua alma, fria e abandonada se encontra, nada mais se pode fazer, quer para o corpo quer para na alma. Em meio do caos que criamos, somente nós mesmos nele somos capazes de nos guiar. Encontrar o que desejamos, e esconder o que desprezamos. Por quê nos importamos com algo que os outros vão desprezar sim ou sim?
Uma roupa, provavelmente já usada, volta-se a usar. Confortável e familiar, por mais que os outros desprezem, mesmo que pouco esse sentimento dure, pelo menos uns curtos momentos de amor-próprio somos capazes de sentir. Mas como uma jarra de vidro, rápido em cacos se parte, a um estado frágil e de constante instabilidade a nossa auto-estima regressa. Olhando no espelho, vendo a negra realidade. Não existe razão de orgulho, prazer ou sequer desejo por existir uma aparência lamentável, uma aura deprimente. Razões têm aqueles que desta despreza, razão têm aqueles que nos provam que por mais fundo que nos encontremos, é sempre possível ainda mais neste mundo nos afundarmos. Qual o sentido de todos os dias continuar tentando? Continuar em busca de um futuro melhor?
O tempo passa e consigo o pior trás, o pior das lembranças, o pior das opiniões, o pior da realidade. Sempre assim foi e sempre assim será. Um ciclo vicioso impossível de quebrar, impossível de alterar. Lavando o rosto nos apercebemos de como não podemos lavar nossos defeitos. Qual a razão de tentarmos o nosso melhor em actividades básicas? Provavelmente por ser higiene que delas não desistimos e continuamos aos poucos nos esforçando, por mais que nossa vontade seja de até esses antigos hábitos abandonar.
Saindo de casa, apercebemo-nos de como é possíveis pior nos sentirem. Ansiedade o corpo invade ao fechar a porta de casa. Fraqueza aos poucos o corpo domina. Será a vontade de para nosso lar regressar? Ou será apenas fraqueza de mais uma vez o pequeno-almoço ignorar? Agora isso pouco importa. Caminhando para a paragem do autocarro rostos indesejáveis vão surgindo. Olhares jogadores começam aos poucos a intensificar-se, inconscientemente nos perturbando, e o desejo de desaparecer despertando. Ao destino chegando, ali esperamos.
O fresco orvalho da manhã dá um toque único às belas flores, que a beira da estrada alegra. As risadas de fundo começam, aos pouco mais próximos vão ficando. As piadas, pesadas e preconceituosas, do ambiente tomam conta. Mesmo com fones com o volume no máximo, não dá para simplesmente ignorar e evitar que tais coisas quebrem o escudo enfraquecido que sozinho blinda a nossa mente sensível e frágil. Mesmo no nosso próprio mundo, dominado pelas músicas que o nosso coração confortam como uma onda de calor acolhedor, algum invasor sempre surge, algum sempre consegue tal barreira quebrar. Constantemente nos puxando de volta para a miserável realidade. Contacto físico e psicológico indesejável vai aumentando. Pequenos toques intensificam-se, tornando-se em empurrões. Preocupação irónica, exprimida através de piadas quebram o escudo, fraco e desgasto que sempre carregamos. Difícil de controlar as lágrimas, mas não impossível. À beira de vez perder a calma, o autocarro chega. Todos entram primeiro, por último nos deixamos estar. As atenções uma vez mais nos cerca, intensamente nos fixando, aguardando um momento de vacilo, para em seguida nos julgar. Num acento vazio, para junto da janela vamos, e ali ficamos. Ao nosso mundo regressamos, vazio e pacífico onde só nós nos encontramos. Piadas distantes abaixo não são mais capazes de nos deitar. A bela vista uma paz inexplicável desperta. A música que nos domina acalma as lágrimas à beira de caírem.
São sete e meia da manhã, o pesadelo só acabou de começar.
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O último dia
Short StoryDepressão é uma doença que perturba milhares de pessoas ao redor do mundo, tratar tal como uma "piada" pode ser um erro fatal... erro esse, repetido centenas de vezes, diariamente sem noção, sem conciência. O que acontece com quem se rende perante a...