"Família"

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O tempo voou, e a infeliz hora chegou. Do lado de fora não se ouvem nem mais gritos nem mais discussão, como se numa casa completamente agora nos encontrássemos. O ambiente familiar não era mais o mesmo, o sangue derramado havia sido trocado por flores, as expressões de ódio haviam sido trocadas por carinhosos elogios de amor. Um universo completamente diferente, uma realidade paralela, nada disto era certo, e por mais que um sonho tornado realidade tal ambiente parecesse, não era difícil de entender que dali a pouco tudo ao velho e amargo normal voltaria, mas por enquanto o mais importante era aproveitar o curto e doce momento enquanto este duraria. A visão de uma falsa e unida família que à mesa se reúne com um olhar caloroso que faz todos anjos parecerem. De um lado um homem que forçadamente chamamos de Pai, chefe da família que de tudo reclama, achando se a sabedoria absoluta e o único que sabe a dor da vida e esforço do trabalho, podre desde que temos lembranças. Do seu lado uma mulher que em tempos havíamos confiado e de amor chamado de Mãe, agora tudo resta uma sombra de submissão que a cada palavra daquele homem treme, e todas as ordens aceita como um cachorro bem-mandado, uma mulher que teve seu orgulho roubado e sua bondade pelas sombras ocultada. Num outro canto tem a progenitora do abusivo monstro que como homem se disfarça. Velha, cansada e arrogante, suas rugas expressavam seu lado mais podre, dava para ver claramente que quem sai aos seus não degenera. Nos sentamos em frente de nossa mãe, ao lado de nossa pequena luz de esperança, ainda em tão tenra idade mas mais vivida que muitos sábios. Apenas cinco aninhos, mas maturidade acima dos vinte. Por nada pedia, cabeça baixa mantinha, dela sempre cuidamos quando podemos, quando dos monstros não se encontra refém.

Ninguém fala sem permissão, pior que regime militar, mesmo sem um tendo experienciado, nada pior do que aquela aura poderia ser. Perguntas temos de responder, no tom e com a resposta certa, se não a pouca ternura que resta rapidamente em violência se torna. Conversas forçadas, risos arrasados de vazio. Sempre aos mesmos temas voltamos, sempre os mesmos temas somos obrigados a debater. Assuntos tabu de opinião dos quais nossa opinião pura não podemos expressar, no entanto a velha insiste em a juventude criticar e dela todos os males acusar, dizendo que nós o mundo enfraquecemos, que futuro não nos espera, somente o inferno nos resta, infiéis em todos os cantos, pecadores em todas as calçadas, mentirosos em cada casa, irónico como seu discurso perfeitamente a si se encaixa, no entanto sobre nós todos os defeitos caem. A geração dela que em mente fechada foi criada, sobre muros aprenderam a replicar e nunca por eles próprios caminhar, tabu é tudo aquilo que eles nunca acesso tiveram, mas que em sua juventude em segredo pegaram e um pouco de si se abriu, mas a idade nada perdoa e sempre regride até ao ponto mas primordial que em nosso pensamento existe. Do falso amor hoje em dia nos acusam, pela igualdade de todos os casais buscarmos, de não ligarmos para género nem sexualidade, de apenas o ódio tentarmos erradicar, de um basta no racismo colocar e um corte final no machismo dar, os menores não sexualizar e a solidariedade priorizar. Um mundo que se liga por laços de bondade e se une por um distante futuro de paz imortal distante da destruição que já causamos em nossas terras, de todos aqueles que suas vidas em vão até hoje perderam. Mas do que disto podemos dizer? Disto no que podemos acreditar? Quando em nosso próprio mundo tudo aos poucos se decai com nossa pouca esperança acabando. Só resta acreditar nos que ainda estão para vir, que mais força que nós em seus corações carreguem, e sejam capazes de curar as feridas corruptas que este mundo assolam. Aquela criança que ao nosso lado se encontra, só Deus saberá qual destino sua alma tomará dali adiante, esperemos que o mesmo que o nosso não seja, que os anjos da terra protejam aquele precioso Sere para se poder tornar uma futura guardiã e portadora de uma sabedoria obscura que o mundo dispensava de nos ensinar.

O prato do dia na mesa nunca poderia faltar, uma dose que directamente para nós era dedicada, algo que como rebaixamento contra nós era sempre usado, pena que não se pode mais destruir aquilo que não mais existe. O clima falso e doce que ainda vagamente pairava pelo ar, não mais existe, a doce sensação de falsidade que nos dava um estranho conforto de vez é quebrada. Em nenhum dia nunca poderia faltar, o questionamento de nossa utilidade em tal vida, o motivo de tentarmos se nosso fracasso já nos é garantindo, para quê lutar por algo se alguém sempre fará melhor. Como brincadeira problemas são tratados, doenças como chamadas de atenção são nomeadas. Uma clara faca que para nós é apontada mas que dela não podemos revidar, por mais que possamos a volta à situação se contra argumentarmos, só nos restará uma vez mais com o cinto levar. Em silêncio permanecemos e tudo aquilo a seco engolimos, a ignorância das milhares de almas perdidas que de ansiedade seus corpos destroem, ajuda preciosa aos que muito mentem e desprezo para aqueles que de verdade sofrem, dos caminhos que para o mal são mudados guiados pela depressão, escolhas erradas que a cada dia só pioram e dores de pensar nos causam, o desejo de desaparecer que constantemente nossa existência vazia abraça, as profundas cicatrizes que temos de esconder e no dilema de mais abrir ou deixar sarar sempre permanecer.

Nossa mãe nos tenta defender, lá no fundo algo de si ainda resta, um certo amor por nós ainda reside, tenta nos proteger, medo de nos perder, uma vez ou outra ousa sua trela esticar e os limites da besta testar, nunca bem acaba, mas quando seu peito não mais aguenta todos os sentimentos trancar uma palavra ou outra fogem, e um caos instalam. A discussão recomeça, o tom rapidamente soube. Nada era de se esperar de algo que sempre assim se repete. Homem e mulher entre si discutem e ninguém a colher deve meter, assim que a velha igualmente penava, sempre a mãe de seus netos inferiorizando e menos prezando, com ameaças a acalmando, e a besta alimentando. Devagar dali saímos, com nosso sol pelo braço, para o quarto em passadas de corrida silenciosa vamos. De nossa existência rápido se esquecem quando rápido assim o clima esquenta, fácil de fugir mas futuramente com consequências teremos de lidar, mas isso pouco importa desde que nossa ainda pequena inocência possa ter paz para crescer, e longe de tais exemplos sua própria opinião puder desenvolver. Numa canção a deixamos a dormir, tendo a certeza que os gritos não incomodam sua consciência e nem seus sonhos, a porta à saída fechamos, ao máximo o quarto isolando e do mal tentando proteger. Ao nosso quarto retomamos, com os fones do mundo nos fechamos, a porta aberta deixamos, a nossa arte nos dedicamos, ao ritmo da áspera sinfonia de violência que pela casa se espalha.

Momentos tarde nossa mãe boa noite nos vem desejar, a ela a chave do anjo entregamos. Um pouco conversamos, lágrimas como rios de seus olhos escorrem, suas feridas abertas, físicas e psicológicas, revelam que sua luta fácil de nada tem, manipulada pelo estresse que seu sistema não mais aguenta dos males que existem forçada em nós a culpa colocar, mas sempre se arrependendo. Tudo de horrendo que nos disse em algum momento por perdão súplica, nós sempre entregamos, por mais que suas atitudes erradas sejam, levadas pelas bestas que a casa controlam, minimamente luta para cada dia viver, cada dia nos ajuda a tentar viver. A seu quarto é forçada a regressar, nossa porta fechada deixando, de início por desculpa pedindo da noite que por ai viria, mais uma ronda de abusos imperdoáveis que em silêncio teriam que ser carregados. Ali permanecemos, de fone a nosso prazer nos dedicamos tentando de tudo aliviar. Tentando pouca atenção ao que nos rodeia prestar.

Assim se encerra um outro dia, um outro momento de família que diariamente assim se sucede, assim nunca muda. Dele odiamos mas nada podemos mudar, o pouco que tentamos caro sempre pagamos, só basta com um milagre sonhar e aos poucos com nossa arte deixar pistas do que sofremos e obrigados somos a viver. Ainda são dez e meia, uma intensa madrugada se aproxima, não só para nós, mas sim para todos. 

O último diaOnde histórias criam vida. Descubra agora