Prólogo

249 35 170
                                    

Higher Lake - 570 km de Ryzenville

Abro o pequeno frigobar a procura de alguma bebida, de preferência alcoólica. Encontro ali o restante de um vinho francês que eu comprei em um mercadinho qualquer no meio da estrada. A garrafa é até bonita e parece ser cara, mas não se iluda, querido leitor, ele não é o melhor vinho da região.

Imperceptivelmente balanço o ombro direito, soltando um grunhido de tédio. Ele nem mesmo é o melhor vinho que eu já tomei. Mas está tudo bem, afinal, não é o vinho que faz valer a ocasião, é a ocasião que faz valer o vinho.

E essa, querido leitor, é uma ocasião maravilhosa.

Ao escutar a vinheta de abertura do Canadá News, o maior jornal do país, os meus olhos se voltam para a pequena televisão de tubo do hotel Hoomaha. Sim, querido leitor, de tubo. Meu Deus, estamos na pré-história? Espero que você tenha ficado tão chocado quanto a mim ao perceber que essas TVs ultrapassadas e antiquadas ainda existem.

Enquanto a vinheta toca, observo o anel em meu dedo. Meu Deus, essa pequena joia é mais cara que todo esse quartinho que eu estou hospedada.

"Boa noite. Hoje completam sete dias do desaparecimento de Uranus Collins."

Oh. Uau. A jornalista foi direto ao ponto desta vez. Nem sequer falou a sua típica frase: "Começa agora mais uma edição do Canadá News."

Sento-me sobre a cama com a garrafa de vinho gelada entre as minhas pernas. Pela urgência com que foi anunciada a notícia, eu diria que eles têm alguma novidade sobre o caso. E isso parece interessante. Muito interessante.

"Hoje completam sete dias do desaparecimento que chocou o país. Uranus Collins, a jovem de apenas 24 anos de idade, foi vista pela última vez há uma semana atrás. A polícia, juntamente com a população local, realiza buscas pela reserva florestal de Ryzenville."

A foto da jovem Uranus preenche a televisãozinha a minha frente. Sabe, querido leitor, eu tenho pena desta garota. Sim, pena. Quer dizer, olhe só para ela: o seu rosto era tão... tão comum que qualquer outra mulher no Canadá poderia facilmente ser ela. A sua beleza era mediana. Uranus não tinha nada especial, nada marcante, nada memorável o bastante.

Apesar disso, todos os 38 milhões de habitantes do Canadá conhecem cada mínimo detalhe do seu delicado rosto. Todos os 38 milhões de habitantes conhecem cada fio do seu cabelo castanho que encostava em seu ombro. Todos conhecem os seus grandes e doces olhos escuros. E todos conhecem o contorno da sua bochecha rosada.

Sim, querido leitor, todos os 38 milhões de habitantes do Canadá conhecem cada milímetro do rosto da ingênua Uranus. É impressionante como uma garota tão mediana e esquecível se tornou tão conhecida.

Por um breve segundo, observo a minha própria imagem refletida no espelho pendurado em frente à minha cama. Oh, eu gosto do meu cabelo avermelhado. Eu realmente gosto das ondulações que se formam quando ele chega próximo a minha cintura. Ora, eu estava certa afinal: esta cor fica ótima em mim. Aperto os olhos para o meu reflexo e, então, ergo o queixo milimetricamente. É, essa cor definitivamente fica ótima em mim. Eu deveria tê-la testado antes.

Sorrio para o meu próprio reflexo. Eu tenho uma aparência especial. Eu tenho uma aparência marcante. E eu tenho uma aparência memorável.

Naquele momento eu tive ainda mais pena da inocente Uranus. Oh, pobrezinha. Ela era tão mediana e eu tão... única.

"Após mais uma noite de buscas pela reserva florestal de Ryzenville, a polícia localizou as roupas que Uranus Collins usava no dia do seu desaparecimento: camiseta vermelha, legging preta e o seu tênis de corrida. Parte de suas roupas foram encontradas na beira de um riacho que se estende pelo limite da reserva florestal." Foi a vez do jornalista ao lado dizer algo. Em seguida, a foto da Uranus usando a roupa descrita aparece em minha tela.

"Próximo ao riacho foi encontrado, também, uma tornozeleira de prata com pingentes de estrelas. Sua amiga Mackenzie confirmou que se trata da tornozeleira de Uranus." A âncora parece tensa, assim como o jornalista sentado ao seu lado.

Aperto os meus olhos e inclino o meu corpo para frente, aguardando a próxima informação. Ora, pela pausa prolongada e dramática que estão fazendo é obvio que haverá mais informações, querido leitor. E informações boas eu suponho.

"O relógio encontrado dentro do riacho contendo as iniciais NL apontam para Nolan Lavoie, namorado da vítima, como principal suspeito do caso." Após respirar profundamente, o jornalista finalmente concluí: "O relógio teria sido um presente de Uranus ao namorado."

Meu Deus. Sinto ainda mais pena da garota desaparecida... Oh, se bem que, se suas roupas foram encontradas no riacho, há uma grande possibilidade de ela estar morta, certo, querido leitor? Ora, então deixe-me corrigir a frase anterior: sinto ainda mais pena da garota morta.

E morta pelo próprio namorado? Pobrezinha. Bom, se bem que não há nenhuma surpresa nisso. Todos os 38 milhões de habitantes do Canadá apostavam nesse tal de Nolan Lavoie. A verdade é que ele sempre foi o principal suspeito do público.

"Aqui é a repórter Carter falando ao vivo em frente à casa de Nolan Lavoie, onde uma multidão se aglomera em busca de justiça por Uranus Collins."

Oh, o caso desse desaparecimento tomou proporções gigantescas. Quem diria que o sumiço de uma típica garota do interior comoveria o país dessa forma?

Com um belo sorriso em meu rosto, bebo um gole do vinho de sabor mediano.

Sabe, querido leitor, quando eu tinha apenas oito anos de idade, estreei a minha primeira peça infantil na escola. Eu fui a única que não chorou implorando pelo papai. E eu fui a única que não gaguejou em nenhuma fala. Após essa apresentação desastrosa, a minha mãe se ajoelhou ao meu lado e, então, disse-me que eu estava destinada ao sucesso.

E hoje eu tenho orgulho em dizer que sim, mamãe, a senhora estava certa.

A senhora estava certa, mamãe, porque cada um dos 38 milhões de habitantes do Canadá conhecem cada mínimo detalhe do meu rosto. Porque cada um dos 38 milhões de habitantes do país conhecem o meu cabelo, os meus olhos doces e as minhas bochechas rosadas.

Porque eu fui o caso que chocou o país. Porque eu estava, de fato, destinada ao sucesso. Eu sempre estive destinada a isso, é inevitável. Obrigada por sempre acreditar em mim, mamãe.

Sente-se confortavelmente, querido leitor, porque eu estou prestes a contar a história da minha ascensão. Porque eu estou prestes a contar como eu fui capaz de estampar os principais jornais do Canadá durante uma semana inteira. Sim, dividirei com vocês a minha trajetória em direção ao meu sucesso glorioso.

Uma breve salva de palmas para mim, querido leitor, porque eu sou brilhante. Porque eu executei um plano brilhante.

Oh, e uma breve salva de palmas a Nolan Lavoie - a real vítima da história. Pobrezinho. Uma breve salva de palmas ao homem que (não) me sequestrou, que (não) arrastou o meu corpo pela reserva florestal, que (não) me matou e que (não) jogou o meu corpo no rio.

Ora, eu sei que ele é inocente, mas toda mocinha precisa de um vilão. É assim que as histórias funcionam, querido leitor. É assim que o mundo funciona. E, bom, eu obviamente não posso ser os dois ao mesmo tempo. Então, Nolan infelizmente teve que assumir o papel do vilão para que eu me tornasse a mocinha ingênua.

Oh, e não me chame de Uranus Collins, querido leitor. Afinal, eu estou desaparecida. Morta. Com o corpo em algum lugar do enorme riacho da reserva florestal de Ryzenville. Pobrezinha.

Querido leitor, chame-me de Lora Roux.

Ah! Querido leitor, não se esqueça de votar e comentar.
Atenciosamente,
- Lora Roux

Onde está Uranus?Onde histórias criam vida. Descubra agora