Capítulo 1

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  É horrível saber que toda a sua vida já foi definida por uma classe social, não importa o quanto você se esforce para conquistar o melhor, sempre será destinada a algo. Se os teus pais são ricos, a probabilidade de continuar assim é muito grande, se os teus pais são pobres, a possibilidade de continuar pobre é exagerada. Muitos dizem aquilo de "se quer ser bem-sucedido, deve estudar", "se quer sair da miséria, deve estudar", mas e quando todas as coisas dizem que não? O que se pode fazer?

  As pessoas são pré-escolhidas o tempo todo, quando se é rico, praticamente já há uma vaga garantida para você na universidade e na vida profissional. Porque se você tem dinheiro pode pagar a melhor escola, o melhor cursinho para ingressar na faculdade, pode ter uma alimentação correta, dormir numa cama boa e desfrutar do melhor. Agora se você é pobre? Bem... É complicado.

  Depois, a sociedade quer nos oferecer a ideia de que tudo depende apenas do esforço. Será que é mesmo? Ou apenas vendemos esta ideia para nos sentirmos mais confortáveis? Tudo que consigo ver é que há algo de muito errado em tudo isso.

  Assim como todas as pessoas, já tenho o meu destino traçado, tenho 17 anos e nunca tive ou terei a oportunidade de mudar de vida. Não porque eu queira, mas porque é inevitável, assim como quase tudo é.

   Nasci em uma casa que não era bem dos meus pais, já que eles invadiram quando eu era ainda um feto. Nunca foram ricos, por isso quando se casaram, – fizeram isso, porque minha mãe estava grávida - não tinham para onde ir, então encontraram um matagal cheio de arvores gigantescas aqui no interior de São Paulo e decidiram torná-lo sua moradia. No começo, imaginei que isso tinha sido um ato de amor entre os dois, mas agora só consigo sentir raiva, porque eles são os culpados pela minha situação e a dos meus irmãos.

  Meus pais construíram um mero barraco entre as arvores, até que eu nasci, e ao longo dos meus dois primeiros anos, vinha sendo difícil para eles, pois não tinham energia elétrica, não tinham muito dinheiro, e meu pai teve de começar a pegar latinhas no chão da cidade para juntar um dinheiro, mas claro, isso nunca foi o suficiente. E tudo isso piorou quando minha mãe descobriu que estava grávida novamente, porque ela sentia vontade de comer várias coisas, mas principalmente de um arroz com feijão, porem não havia dinheiro, então ela teve de se contentar com o seu destino: passar fome em plena gravidez.

  Eu não me lembro destas coisas, mas sei disso porque ouvi meus pais discutindo uma noite, quando tinha sete anos de idade. Eles gritavam ferozmente decidindo o que fariam para nos sustentar, já que minha mãe já estava gravida do quarto filho nesta época. Lembro que ela disse repetidas vezes que estava com fome, que se sentia fraca e realmente precisava de alimento. E o meu pai berrava chegando ao histerismo dizendo que ela sentiu muita fome em todas as vezes que ficou grávida, mas que sempre se saiu bem em cada gestação, então não haveria um motivo para se preocupar.

  Não, minha mãe não morreu nesta gestação, ela suportou bem a fome, a dor, a tristeza, ela aguentou tudo sem reclamar. Cuidava de tudo sem ao menos perguntar "por que eu?", talvez esta seja a melhor qualidade dela, aguentar tudo pacientemente. Contudo, em sua quinta gestação, ela não se saiu tão bem, pois a fome fora cruel demais para seu organismo, fazendo com que a criança nascesse bem, embora com muitos problemas de saúde, mas minha mamãe, inevitavelmente, morreu.

   Ouço minha madrasta me chamar:

  - Ana Clara, se levanta logo, fia. – diz de um jeito apressado – A dona Maria deve estar cansada de aturar aquela criançada chata.

  - Eu estou indo! – Grito em tom de reprimenda.

  Meu pai se casou logo após a morte da minha mãe com uma cristã fervorosa. Ela é uma ótima pessoa, embora a ache muito forçada, mas confesso que ela tem me ajudado a cuidar dos meus irmãos. "Ajudado" apenas, pois age como se meus irmãos fossem meus filhos e fossem minha responsabilidade. Enquanto isso, o pai e marido ausente que deveríamos tanto amar, está nos bares se enchendo de cachaça até o talo. Isso me faz sentir com pena de todos aqui, e me faz ansiar por dias melhores.

  A solução para mim foi começar a trabalhar de babá na casa da Dona Maria, uma mulher respeitada e com muito dinheiro. E para a minha felicidade, possui três filhos: um de 6, outro de 9 e o mais velho de 17. Isso me gera uma boa renda de 100 reais por mês que se torna 25 ao dividir com os meus irmãos mais novos. O que não adianta muito, porque quando meu pai chega bêbado, temos de dar cada centavo para ele.

  Não digo que foi a solução para mim por causa do dinheiro, mas porque posso sonhar com uma casa melhor, uma vida melhor, sem sentir fome ou apanhar a cada vez que o meu pai beber. Eu apenas quero mais, sabe? Uma vida que eu possa escolher qual a direção. Nesta casa, eu posso simplesmente sonhar.

  Levanto-me apressadamente do meu colchão no chão. Ele está do lado das "camas" dos meus irmãos, por isso tenho de pisar com cuidado para não os acertar enquanto ando. Caminho até uma montanha de roupas no canto do quarto, já que não temos um armário, pego uma camiseta surrada do meu pai e uma bermuda bege larga, por isso tenho de procurar um cinto para prende-la a mim.

  Procuro algo para tomar café da manhã, mas só encontro um pão francês duro com uma parte mofada. Terá de servir. Pego uma faca e tento tirar os pedaços do mofo do pão, e em seguida dou umas mordidas, sentindo a secura inevitável causada pela mastigação de tal alimento.

  Caminho pesarosa em direção à saída da minha casa, não me sinto preparada para passar por isso, aturar mais um dia de trabalho, sem conhecer pessoas novas, sem casar e olha que no fundo, eu sempre quis estudar e ser alguma coisa, mas agora tenho de me contentar com nem saber ler.

  Perambulo por entre as arvores que estão ao redor do nosso barraco, estou indo em direção ao casarão da Dona Maria, odeio como me sinto uma intrusa lá, mas por mais ruim que seja agora espero realmente que a minha história possa mudar um dia. 

Motivo para matar quem você amaOnde histórias criam vida. Descubra agora