DIA 02 - QUARENTENA - "MATRIARCADO"

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Cobri os olhos no instante em que sai daquela casa, com o choque da luminosidade do sol em meu rosto, mas quando absorvi seu calor, senti uma calma percorrer meu corpo. Carregando a mochila nos ombros, chamo Brida para colocar a coleira. Ela caminha calma e alegremente em minha direção até que para na minha frente e se senta, aguardando. Coloco a coleira seguro-a firme em uma mão com as chaves do carro na outra, abro a porta do acompanhante para brida entrar, ela o faz com habilidade costumeira, abro os portões e volto para sentar no banco.

Quando giro a chave, a energia do carro parece me acordar de um transe, percebendo o momento de quebra e mudança de ciclos e aguas em minha vida sinto, enfim, o medo e a ansiedade tomarem conta do meu corpo, mas quando pego no volante, isso se transforma numa estranha excitação.

Morei a vida toda com a avó, quem eu chamava de mãe, sua filha, a qual morreu numa viagem pouco depois que nasci, nunca se deu ao trabalho de descobrir quem era meu pai, como minha vó o fez quando a teve, ela sempre dizia "essa é uma família de matriarcas, anciãs, fêmeas e portadoras do poder e do portal da Vida" o que sempre achei divertido, além de ela sempre ter abordado a morte comigo de maneira leve: sempre que alguém falava que sentia muito pela minha perda, quando criança, ela logo se intrometia e dizia que ninguém havia se perdido, minha mãe simplesmente havia cumprido sua missão de me trazer para ela, mantendo o sangue e o poder da família em sincronia com os ciclos e a continuidade da vida. Quando estávamos sozinhas, ela sempre falava sobre as coisas incríveis e insanas que ela já fez, minha mão fez e eu um dia farei, falava sobre portais pela terra, a irmandade e conexão com a natureza e a importância de estar sempre atenta e forte para a vida e suas magias e desafios. Quando perguntava sobre sua morte ou a morte em si, ela sempre disse: "A morte é um rito de passagem, sua mãe morreu vivendo e celebrando a vida mesmo carregando a morte muito antes de morrer".

Fui entender o fim dessa frase tempos depois, quando soube que pouco depois que nasci, minha mãe desenvolveu um câncer, rapidamente e extremamente nocivo, que logo sugou a vitalidade dela e, como um ultimo suspiro da vida, ela foi viajar encontrar seu portal e celebrar o que viveu e criou.

Mas quando minha vó estava morrendo, semana passada, perguntei porquê ela também não iria procurar o seu portal e ela disse: "meu portal é onde você está, onde eu criei minhas raízes, finquei nas profundas veias dessa terra há muitos anos, quando sua mãe nasceu e soube que morreria aqui, nesta rede, sob este sol".

Meu olho começa a marejar com a lembrança e o focinho gelado de Brida me desperta do mergulho no passado. Saio com o carro e sigo em frente pela estrada vazia e reluzente com um mapa ao meu lado, sem rumo, sem destino e sem mais nada além do meu cão, meu carro e meu pulso de vida.

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