DIA 04 - QUARENTENA - "A MANSÃO DA MINHA MENTE"

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Eu simplesmente me sentei e comecei a rir, o que só intensificava a leveza que estava sentindo. Havia acabado de perder tudo, ou o pouco que me restava. Por motivos que nem eu sei identificar, essa foi uma tentativa da vida que eu mesma arquitetei para tentar me derrubar e me arrastar para uma maré desconhecida. Dane-se meus planos futuros, não há nada que não possa ser recomeçado, modificado e até mesmo aperfeiçoado. Dane-se o que eu tinha, pois é preciso se autodestruir para, enfim, ter espaço para se autoconstruir, então, só me restou rir. Todos a minha volta, que antes mostravam um semblante de deboche e riam com minha cara de espanto e perdida em meio á um parque com pais e crianças com vidas bem delimitadas, claras e definidas agora estavam espantados, com medo, perplexidade.


Me levantei, ainda rindo, e girei, bem devagar para olha em cada par de olhos que me encaravam, debochava deles descaradamente, não entendiam que o bem mais precioso que eu tenho não me pode ser tirado por nenhuma mão mundana: eu mesma. Me pertenço, conheço meus limites e assim, sei o que e como ultrapassa-los, tenho total noção das minhas qualidades, mais ainda dos meus defeitos e já convivi com eles tempo o bastante para saber como lidar, ou seja, não existe nada que possa realmente me derrubar, me matar "essencialmente".
Simplesmente sai andando, e eles, tolos que são, ainda abriram espaço para eu passar. Na hora, até achei que fossem querem me manter ali, naquela cena ridicula por um tempo, já até estava me preparando psicologicamente para perder meu trem, mas não, eu só passei por cada um que segurava seu filho, livro ou cachorro, peguei meus fones e, por ironia do destino, tocava "where is my mind".
O trajeto até a estação foi incrivelmente quieto e tranquilo. Minha mente estava turbulenta e agitada, mas vazia, só fiquei girando e girando internamente no espaço recém criado. Todas as preocupações, os desejos fúteis, as lembranças que ainda cismavam em se reproduzir na minha cabeça... Tudo isso e muito mais estava se esvaindo, como um sonho antigo que ia sendo esquecido membro a membro. Minha alma tinha espaço de sobra para dançar e festejar agora, foi como arrumar um cômodo bagunçado e perceber que ele era maior do que você imaginava.

Imersa nessa dança, quase não percebo o carro buzinando, a moto passando, pessoas gritando... isso tudo ficou em segundo plano e por enquanto eu me deleitava na minha leveza. Quando chego na estação, já logo me deparo com meu trem, quase como se ele estivesse esperando por mim, clamando para que minha alma concedesse uma dança com ele como cenário. O vagão não está nem cheio, nem vazio, apenas preenchido por uma quantidade agradável de estranhos, completos estranhos, os quais eu nunca vi, ou se já vi, nunca vou realmente conhecer, todos ali tem suas vidas, suas prisões, suas preocupações, e a minha vontade era de sentar ao lado de um de cada vez e ajudá-los a limpar seus cômodos mentais, fazer eles abrirem as janelas e deixarem o sol fazer morada, dançar a música mental deles, me pergunto que músicas e quais ritmos tocariam na mente de cada um.

Meu ponto é o último, onde quase ninguém descia naquele horário, então posso observar todos descendo, seguindo para o decorrer de suas rotinas, se encontrando com mais pessoas, as quais, provavelmente nunca conhecerei também. Será que alguém aqui está indo se encontrar com alguém que saiba dançar a mesma Dança? Que goste da música mental do companheiro? Que entenda a música e que, quando perceberem que é necessário, ajudariam a "arrumar o cômodo mental"? Aliás, admiro as pessoas que podem se identificar com a definição de cômodo, mas acho que melhor me encaixo em mansão, não por espaço ou tamanho, mas por complexidade, pois sei que constantemente me perco nos meus corredores, alguns quartos acabam sendo assumidos pelas trepadeiras por falta de cuidado, e imagino que cada relacionamento na minha vida é representado por um cômodo, os mais superficiais ficam no térreo mesmo, de fácil acesso, onde todos podem ver e até entrar, os mais profundos ficam no segundo andar, onde deve-se subir as escadas, identificar sua porta após voltas e voltas nos corredores e, principalmente, é necessário a chave, esse andar está vazio há tanto tempo que as trepadeiras já estão até nos corredores. O terceiro andar é inteiramente meu, um quarto para cada versão minha que habita em mim, e acesso restrito para o terraço...A melhor parte é essa, um jardim imenso, colorido, brilhante, único, onde o brilho do Sol é até mais acolhedor, o vento te chama para dançar, a lua te cumprimenta como uma velha amiga, os pássaros e morcegos exibem seu dom de voar sem medo ou limite, posso até vê-los sorrindo, gargalhando sobre alguma coisa que provavelmente só eles entendem, as borboletas parecem algo mágico de tão magníficas e as mariposas e libélulas não ficam para trás, parecem tão leves mas tão agitadas, tão intensas... Tenho acesso a esse terraço sempre que sinto o calor do sol na pele, parece que a luz dele é quem me guia para a escadaria.


O mais engraçado disso tudo é que, faz um tempo que não estava conseguindo entrar nessa minha mansão mental, parecia que eu estava trancada do lado de fora como quem perde a chave e nunca se preocupou em aprender a arrombar uma porta, e hoje, ao perder tudo e todos, parece que, na verdade, só recuperei o que me era mais valioso, uma parte minha, uma parte sensível que permite o acesso e a abertura para mim e outros, então, hoje, ao perder, ganhei de volta minha chave.


Desço do trem, tão calma e renovada depois desse dia louco, para dizer o mínimo, e agora tudo parece novo, mais bonito, mais brilhante, o sol está atrás das nuvens, mas seu brilho toca tudo, glorifica tudo: as ruas deixaram de ter aquele ar cinza, agora vejo as cores por elas próprias, brilhantes, clamando para serem vistas e apreciadas, quase me perco em meio a tantas, não consigo dar a atenção que cada uma merece, mas então, apenas admiro quantas eu posso até chegar ao portão da minha casa.


Depois de uns minutos procurando a chave em meio ao universo paralelo que é a minha bolsa, abro o portão, passando pela garagem como sendo um cômodo inútil da minha casa, entro na sala, jogo minha mochila e aviso ao ar que cheguei. Meus pais nunca estão em casa, vivem em viagens a trabalho, vejo eles só nos feriados principais e até nessas ocasiões eles costumam arrumam desculpas. Tiro o uniforme, pego a primeira camiseta que minha mão tem acesso e já vou logo para os fundos, para meu refúgio real, meu jardim, minha visão perfeita do Sol, em todas as suas fases do dia. Chegando, percebo que minha roseira está com sede, aliás, a maioria das flores estão, então, antes de qualquer coisa, projeto uma "chuva" com a mangueira e vou me molhar junto às plantas. A sensação da mudança térmica onde as gotículas de água me tocam é cativante, parecem pequenos choques de vida que me recarregam, e o brilho do Sol de fim de tarde me atingindo só intensificam, mesmo com os olhos fechados posso ver a luz dele, posso absorver ela. Me deito no chão, já completamente molhado e, ainda com os olhos fechados, vejo o meu dia se reproduzindo por completo, vejo o peso que esse dia tem para a formação do meu futuro, revejo todos os meus planos se desmoronando, se esvaindo e só o que posso fazer é sorrir, sorrir e agradecer por saber que tenho a dádiva e a capacidade de criar tudo de novo, tudo novo. Posso ser quem eu quiser e sem nem mudar meu nome, posso me refazer, aliás, já o estou fazendo.


Mergulhada nessa gratidão, percebo que estou no meu "terraço mental", pois parei de ouvir o carro passando na rua, o vizinho arrumando a cozinha... tudo isso sumiu, ouço apenas o barulho da água, o pássaro cantando, o vento dançando...
Acordo e o Sol já se foi, a lua brilha e as estrelas acompanham ela, morcegos passam rápido para tomar a água com açúcar do pequeno bebedouro pendurado em uma das árvores, consigo ouvir também uma coruja, mas não posso vê-la.
Me levanto e percebo que minha camiseta ainda está úmida e provavelmente amanhecerei resfriada.

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⏰ Última atualização: Jan 27, 2021 ⏰

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