Prólogo

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Morris não exibia sua habitual arrogância à medida que guiava a balsa por aquele pântano fétido. A expressão severa fora levemente tingida pelo receio. Os olhos acinzentados e hostis vagavam pela imensidão sombria, atentos ao menor sinal de perigo. Aquele era um lugar onde poucos ousavam entrar, um lugar deveras perigoso... Até mesmo para um imortal antigo como ele.

A balsa deslizava lentamente pelas águas macilentas, penetrando por entre as brumas gélidas que cercavam as árvores escuras. O tom turvo da água quase parecia negro às sombras da noite. E o cheiro era de morte.

A lua quase não aparecia naquela escuridão, mas Morris jamais precisou de muito para enxergar, empurrava a balsa com um cajado e parecia saber exatamente para onde ir. Os ombros rígidos indicavam o nível de desconforto com aquela viagem. E quando ele avistou a choupana fracamente iluminada no meio do pântano, seus instintos protetores aumentaram. Abriu um sorriso perverso.

A choupana encontrava-se dentro de uma árvore oca e podre. A aura que emanava era deveras sombria, tão escura que Morris chegou a hesitar. Embora os imortais amassem as trevas, aquele lugar os repelia instantaneamente.

No entanto, Morris não teria se arriscado naquele Pântano se não fosse realmente importante. Relutante, parou a balsa e deu um passo à frente. A porta aberta revelava o que o aguardava lá dentro. As paredes eram mofadas e cobertas de ervas venenosas, a madeira podre como a árvore que sustentava a choupana. Em uma das janelas empoeiradas serpentes peçonhentas se abrigavam num nó ameaçador, os olhos dissimulados miravam tudo ao redor. Pendurados no teto, frascos de poções viscosas.

Morris não se deixou intimidar e entrou no covil, ouvindo a madeira ranger sob seus pés. O cheiro pútrido fazia cócegas em seu nariz e embrulhava seu estômago. Não havia o cheiro doce e atraente de sangue, mas sim o aroma inconfundível e repulsivo da morte.

A enorme mesa de osso era o único móvel no recinto, ocupava quase todo espaço e era, sem dúvida, a fonte de poder daquele lugar, cercada de velas negras que iluminavam pavorosamente o recinto.

Se fosse um humano, Morris teria se assustado com a visão dos vidros no tampo de osso. Eles continham olhos humanos, dedos e línguas.

Mas se ele fosse humano, jamais teria pisado naquele lugar!

Ele não era humano. Era um imortal antigo, poderoso e letal.

E foi com surpresa que viu a velha do outro lado. Ah, sim... – ele pensou – Era por isso que estava ali. Fitou a velha em silêncio.

Ela estava recostada na parede macilenta, o manto negro caindo desleixadamente em seu corpo muito magro. Exibia nos dedos esqueléticos anéis enormes e do pescoço pendia um cordão grosso com um dente afiado. Os cabelos eram negros, longos e sebosos, caindo soltos pelas costas levemente encurvadas.

- Eu sabia que você viria... Antes mesmo de se decidir. – disse ela com sua voz arrastada. E então voltou seus olhos âmbar para ele.

Morris fitou aqueles olhos assombrosos e estremeceu. Não confiava naquela mulher. Quase tanto quanto não confiava naquele pântano sujo. Há séculos aquele lugar aterrorizava a população romena, a maioria evitava aqueles lados pútridos de Brasov. Todos temiam aquelas águas... Inclusive ele.

Se não estivesse desesperado jamais se arriscaria tanto.

- Você tem o que preciso? – perguntou, pouco à vontade, a voz retumbando no silêncio.

- Ah... – a velha suspirou, peçonhenta, e se aproximou do vampiro, tocando-lhe o rosto numa carícia maligna. – Tenho tudo do que precisa, precioso Morris.

Morris estremeceu violentamente, sentindo o sangue ficar pastoso em suas veias. Precisava se lembrar de quão venenosa era aquela mulher.

- Não toque em mim. – esquivou-se.

A velha gargalhou, divertindo-se com o medo pateticamente oculto do vampiro. O olhar âmbar vidrado no rosto inumano.

- Você se acha indigno de ser tocado por alguém como eu ou sou eu a indigna por tocar no poderoso Suveran?

- Não pense você, Velha, que pode me infectar com seu veneno.

- Eu não ousaria fazer isso, meu querido. – disse ela com ternura. – Já faz muito tempo que não nos vemos...

- O tempo é mesmo cruel – Morris sorriu perversamente. – Transformou-a de uma jovem ardente à uma velha peçonhenta... Não é mesmo, Ursula? – ele pronunciou o nome com ousadia.

Por um momento a velha o fitou com um ódio tempestivo, lembrando-se de seu passado. Mas então os lábios enrugados se esticaram num sorriso diabólico, fazendo o vampiro estremecer. Ela caminhou a passos lentos até a mesa de osso, remexendo em seus vidros e garrafas turvas. Retirou do meio daquela bagunça um vidrinho pequeno onde um líquido escuro e viscoso repousava.

- Isso é o que você quer – disse ele, entregando o vidrinho à Morris.

- Tem certeza?

- O veneno mais poderoso no mundo oculto. Nada pode contra ele... Nem mesmo você, Suveran. – ela deu uma risadinha.

E para provar seu argumento, uma das serpentes coloridas da janela deslizou pelos ossos da mesa e se enganchou no pulso da velha. Os olhos da cobra se voltaram para Morris numa promessa letal.

O vampiro assentiu uma vez antes de soltar em cima da mesa duas moedas carmesim e ir embora.


A sedução da Meia NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora