Conto 7

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Número de palavras: 2.395

Certas histórias não devem ser relembradas.

Suzanna Le Fay era uma sacerdotisa Wicca. Para os leigos, ela era uma bruxa. Mas para seus amigos, Suzy era apenas uma garota comum que adorava estudar a terra e as ciências naturais. Tinha um vasto conhecimento sobre a natureza, que foi passado por gerações.
O seu nome mesmo era Suzanna Martins. Mas quando estava com seus amigos da comunidade Wicca, mudava seu sobrenome em homenagem a maior bruxa da história, Morgana Le Fay, mesmo ela não tendo a melhor fama do mundo.
Mas mudando o assunto, Suzy foi visitar uma prima em uma pequena cidade no interior do Nordeste, conhecida pelo nome de Terra Santa. E bem na véspera do Halloween. Era um feriado dos Estados Unidos que foi aceito em algumas regiões do Brasil.
Parece que não foi muito bem aceito em Terra Santa...
Ao chegar na cidade, percebeu que havia um certo conflito na Grande Praça, que fica no centro da cidade. Haviam dois grupos, um dele era da Secretaria da Educação, Cultura e Turismo e o outro era de conservadores da paróquia de Santa Teresa.
Viu que sua prima Dandara estava no meio da multidão. Era para recebê-la na praça. Era uma praça circular, com diversas árvores e bancos. É um local onde os moradores passavam o tempo e vendedores ambulantes tentavam ganhar a vida. Era também onde se realizava as festas da cidade.
_ Prima Suzy, quanto tempo! Que bom que veio! Desculpe por não lhe receber, mas estamos em meio a um protesto! _ Disse sua prima ao vê-la na praça.
_ Tudo bem, mas o que houve? _ Quis saber Suzy.
_ A Secretaria quer trazer mais cultura e turismo para o interior do Nordeste, mas os puritanos da paróquia querem proibir por conta de uma certa história que dizem que aconteceu aqui em Terra Santa na época da escravidão.
_ Toda essa confusão por causa de uma história?
_ Vamos para a minha casa. Lá eu explico tudo. Já vi que será mais uma batalha perdida.
Na casa de Dandara, ela explicou a Suzy o motivo da rixa entre a Secretaria e a paróquia. Sua prima era professora de história da única escola da cidade. Foi a Casa Grande no Período Colonial, que foi destruída por um misterioso incêndio e séculos depois foi reformada pelo Governo para se tornar uma escola.
Um grupo de alunos encontrou registros sobre a verdadeira história da fundação de Terra Santa e informações mal contadas e escondidas pela própria cidade. Dandara contou o que eles descobriram:
_ Há quem diga que Terra Santa sempre foi uma cidade de paz. Na época da escravidão, toda a região era uma grande fazenda de produção de cana de açúcar e prosperava às custas do trabalho escravo. Mas segundo o que foi descoberto, a cidade viveu dias sombrios, cheios de violência e sangue há centenas de anos. Terra Santa vivenciou o terror quando um grupo de escravos, mantenedores da cultura e do poder de seus ancestrais, liderou uma rebelião. Tal evento aconteceu exatamente na noite de 31 de outubro, dia das bruxas...
Suzy só escutava o depoimento da prima muito atenta.
_ Naquela noite, Terra Santa foi banhada com sangue; a morte acompanhava os passos de um jovem escravo, cujo tanto o corpo quanto a alma, foram possuídos por um espirito dotado de um imenso e sombrio poder. Ninguém sabe como, mas o Lorde Negro, como o escravo possuído pelo espirito demoníaco ficou conhecido, foi acorrentado e jogado numa prisão juntos com os seus irmãos e um grupo de fanáticos religiosos ateou fogo à prisão, os queimando vivos, deixando para trás apenas os ecos de suas maldições. A cidade preferiu esquecer, fingir que aquilo não havia acontecido, e nunca mais se ouviu neste tal espirito, até hoje.
_ Mas prima, se a paróquia local não quer que esta história seja revelada, algum motivo tem! _ Concluiu Suzy. Com sacerdotisa, sabia muito bem que, se certas coisas são mantidas escondidas, era porque tem que se manter assim.
_ Ah Suzy, que besteira! Estamos em 2020. É só uma história que nem sabem se aconteceu mesmo na cidade a anos. Não tem nada registrado nos livros de história. O problema é o pessoal da paróquia que é muito moralista, ainda vivem no passado.
Suzy ficou curiosa em saber mais sobre o tal espirito e decidiu ajudar a prima em suas pesquisas, começando por uma sondagem pela cidade.
Durante a sua caminhada, reparou o quanto a cidade estava dividida em relação ao fato que foi descoberto. Muitos adolescentes estavam animados com a festa de Halloween. Já os membros da paróquia se mostravam muito apreensivos com o evento.
Por mais que fosse discreta, Suzy chamava a atenção por onde passava. Como era uma cidade pequena, já souberam que ela era uma bruxa. Muitos curiosos, principalmente os jovens, a paravam para falar com ela e saber mais sobre a cultura Wicca. Mas infelizmente também foi hostilizada pelos conservadores da cidade...
Durante a sua caminhada, ela avistou uma certa propriedade nos limites da cidade, um casarão abandonado sob posse da prefeitura, que era usado pelos adolescentes para os mais diversos fins, mas também era frequentado por mendigos, prostitutas, drogados e vândalos. Para evitar o vandalismo, a prefeitura e a Secretaria da cidade decidiram fazer do casarão um centro histórico, cultural e de lazer.
Este também era um dos motivos da discussão na cidade. Foi naquele casarão que o Lorde Negro e seus amigos escravos foram aprisionados e queimados vivos. Lá, encontraram um grupo de jovens bisbilhotando o local. Eram alunos de Dandara e resolveram montar o seu próprio grupo de bruxaria em homenagem aos escravos bruxos. As meninas foram apresentadas a Suzy e ficaram muito contentes ao conhecerem uma bruxa de verdade, mas levaram uma bronca por invadirem o casarão.
_ Não deveriam estar aqui. Não por conta da história, mas porque a propriedade foi interditada pela prefeitura. Já pensaram se algum bandido entra aqui e pega vocês?
Enquanto Dandara conversava com o grupo, Suzy foi vasculhar o local. Sentiu uma forte presença naquele lugar. Como feiticeira, tinha uma certa sensibilidade espiritual. Podia jurar que naquele momento, estava ouvindo vozes.
“Aqui foi onde escravos morreram. Suas almas ainda estão apegadas ao plano terreno.”
Seu pensamento foi interrompido pela prima, pedindo para ir embora e levar as meninas. No caminho de volta para casa, Suzy desabafou:
_ Acho uma pena o que houve com aqueles escravos, principalmente o que dizem ter sido possuído pelo demônio. Eles somente queriam ser livres. Vai ver nem eram bruxos de verdade, eram apenas curiosos sobre a natureza, assim como eu!
_ Mas prima, foram encontraram registros sobre ele, dizendo que realmente um deles foi possuído.
_ Isto foi o que relataram na época, mas isto não quer dizer nada. Desde os tempos remotos, quando não tinha nenhuma explicação para tal fato, já achavam que era obra de forças malignas e partiam para a ignorância. É natural e besteira do ser humano temer o que não entende. Mas também não procura entender, já vai logo tirando conclusões erradas.
Finalmente chegou o dia das bruxas. Mesmo sobre os protestos da paróquia, o feriado foi realizado em algumas casas e na praça. A maioria estava fantasiada ou usava somente roupa preta. A Polícia estava presente para evitar tumultos.
Suzy e sua prima Dandara também participavam do evento, com o tradicional costume de doces e travessuras. Para não ficar de fora, vestiu a sua túnica Wicca. Fez muito sucesso por onde passava...
Nisso viu um grupo de jovens descendo a rua abaixo. Conhecia aquele grupo, eram os alunos de Dandara que estavam no casarão alguns dias atrás. Por curiosidade foi atrás delas.
Como já suspeitava, os viu entrar no casarão. Pensou em voltar para buscar ajuda, mas estava muito tarde para voltar sozinha. E também saber o que aquelas crianças estavam aprontando.
Pelo jeito não era coisa boa. E pelo o que Suzy conseguia ver por uma rachadura na parede, eles decidiram brincar de invocar espíritos.
Não se sabe como elas fizeram isso, mas fizeram e conseguiram!
O que era para ser apenas uma brincadeira se torna um pesadelo quando o espírito do Lorde Negro respondeu ao chamado, possuindo o corpo de um garoto. Junto com ele, espíritos malignos se apossaram de cada um daqueles jovens que estavam ali, para se dirigir à Terra Santa, dispostos a dar continuidade ao terror que começaram há centenas de anos.
Ele começou um discurso:
_ Meus irmãos de cor. Finalmente estamos livres para nos vingar daquelas que oprimiram e escravizaram nosso povo! Afinal, a vingança nunca morre! E a cidade de Terra Santa precisa pagar!
Foi assustador até mesmo para Suzy, que sabia muito sobre magia negra. Conhecia vários feitiços e rituais, mas nunca viu nenhum deles se realizar. Precisava fazer alguma coisa.
Voltou a cidade para avisar sobre o que aquelas crianças aprontaram. Avisaria pelo menos a sua prima, que talvez seria a única a acreditar nela. Era bem capaz de ser acusada de realizar o ritual e sofrer represálias.
Era difícil correr com aquela vestimenta de bruxa, ainda mais no escuro, mas não tinha outro jeito. Durante a sua fuga, Suzy teve a sensação de que se perdera no caminho e piorou quando achou que estava sendo perseguida. Pediu proteção aos seus deuses Wicca e aos espíritos da natureza.
Enquanto se concentrava em suas orações, quando sentiu alguma coisa atrás dela. Por incrível que pareça, tinha realmente algo atrás dela. Podia ser paranoia da sua parte, mas chegou a escutar passos atrás dela. Chegou até mesmo a ouvir a respiração de alguém ou alguma coisa atrás dela. Resolveu olhar para trás para acabar de vez com aquele suspense.
Não tinha nada...
Respirou aliviada. Mas quando voltou a olhar para frente, tinha mesmo alguém ali. Era o espirito demoníaco do Lorde Negro, incorporado no corpo de um dos jovens. Suzy gritou com toda a sua força em vão. Estava no meio do nada e ninguém iria ouvi-la, ainda mais que ele a agarrou pelo pescoço. Ela se debateu numa tentativa de escapar dele. Chegou a cair no chão.
Assim que levantou, o demônio não estava mais ali. Foi uma alucinação da sua parte, apesar que, para uma alucinação, foi muito realista. Seu pescoço estava dolorido e por sorte não quebrou. Agradeceu aos deuses Wicca por ainda estar viva.
_ Não agradeça ainda, Suzanna Le Fay!
Uma voz grave ecoou pela escuridão. Era ele.
“Pronto, saí do caldeirão para cair na frigideira!” Pensou.
_ Sim Suzy... eu sei muito bem quem é você! Não tenha medo, não lhe farei mal.
Ela nem conseguia responder, o medo não deixava.
_ Quero lhe fazer uma proposta! Una-se a mim! Seja a minha rainha! Não tem que proteger aquela gente, que nos oprimiram, nos escravizaram e nos maltrataram durante anos e você sabe muito bem disso! Não merecem a nossa piedade!
Isso era verdade. Desde criança, Suzy foi vítima de racismo, tanto pela cor de sua pele quanto pelo seu conhecimento Wicca. Mas também sabia que pagar o mal com o mal, não era a solução dos problemas.
_ Por favor, parem com isso! Isso já tem séculos, não têm que se vingar! Perdoem, eles não sabiam o que faziam! E aquela gente na cidade não tem culpa!
_ Se não ficará comigo, então é nossa inimiga!
Ele conjurou um feitiço onde Suzy se viu em meio a um círculo de fogo. Para a sua sorte sabia um contrafeitiço para invocar a chuva. Assim que conseguiu apagar as chamas, correu em direção a cidade.
Chegou tarde! Assim como a séculos atrás, Terra Santa foi lavada com sangue e morte, como foi séculos atrás. Houve uma verdadeira carnificina e havia terror e medo em todos os cantos. A igreja local ficou completamente lotada. Os puritanos da paróquia, assim que a viram, queriam correr atrás dela para lincha-la, mas estavam apavorados por demais com o pandemônio correndo solto pela cidade.
Para um bando de fantasmas, aqueles guerreiros escravos eram bem reais!
Graça a Deus encontrou sua prima ainda viva. Explicou a ela o que aconteceu.
_ Misericórdia Suzy, a gente tem de fazer alguma coisa! Você não conhece nenhum feitiço?
Bem que ela tentou se lembrar de algo útil, mas nada vinha na cabeça. Lembrou que os escravos foram queimados vivos, mas não ia fazer isso, pois os jovens ainda estavam lá e não iria machuca-los, principalmente o que foi possuído pelo espirito do Lorde Negro.
Em meio ao desespero lembrou de um certo procedimento muito usado pela igreja. Sim, ela até podia ser uma sacerdotisa, mas também conhecia sobre outras religiões, pois nunca se sabe quando tais conhecimentos poderiam ser uteis.
E aquela hora era de bastante utilidade. Só não dava para garantir se daria certo. Mas resolveu tentar. Pegou uma bíblia que por sorte estava ali jogada no chão, abriu em uma página qualquer e começou a ler em voz alta. Na falta de crucifixo, segurou com fé o seu talismã Wicca.
Estava tentando fazer um exorcismo! O que o pavor não faz com as pessoas...
De repente começou a cair raios do céu. Lembrou do feitiço de chuva, que não era lá grande coisa, mas sabia muito que água e eletricidade juntos era uma combinação perigosa. Ainda mais quando um dos poucos cabos elétricos da cidade se partiram e tocaram no chão molhado.
O Lorde Negro e seus companheiros foram eletrocutados. E junto com eles, os fantasmas se foram.
O dia amanheceu em Terra Santa, ou pelo menos o que sobrou dela. A cidade em peso estava de luto pelos mortos da Noite de Halloween. Só restava aos sobreviventes do massacre limpar a sujeira deixadas pelos escravos bruxos.
Falando em bruxaria, Suzy decidiu ir embora o quanto antes. Apesar de salvar a cidade, muitos a olhavam com ódio e desprezo. Para evitar mais problemas, saiu fugida de lá e insistiu para a sua prima Dandara ir junto. Como era prima de bruxa, poderiam descontar nela.
Antes de ir, queriam saber sobre o adolescente que foi possuído pelo espirito do Lorde Negro. Ninguém soube ou não quiseram responder. A solução mesmo era ir embora dali.
Dandara pediu perdão a Suzy por insistir nessa história de bruxas. Realmente se ninguém queria relembrar o passado, era porque não era para relembrar mesmo!
Agora a cidade de Terra Santa tinha mais uma história para guardar a sete chaves. E desta vez, ninguém mais ousaria a contá-la de novo!

Autor: NancyScalertt

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