Conto 1

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Número de palavras: 2.245

Janeiro de 2019, perto de Salém, Massachusetts, EUA

Em uma realidade paralela a nossa, o mundo se vê num caos inacreditável. Pessoas não morrem mais. Azrael, o anjo da morte, desapareceu. Com isso a humanidade está impossibilitada de descansar. E ao contrário dos filmes, nada mata os que fogem do controle. Pior, nem os próprios animais morrem.
Com isso, antigas criaturas temidas pelos humanos ressurgem. Criaturas que ganham a vantagem de não serem mortas. Bom, não por armas humanas.
Nesse cenário, Nathália Silva é uma das poucas pessoas que podem ainda proteger os humanos comuns. Desde que Azrael sumiu, no mês passado, os anjos foram embora da Terra para se dedicarem as buscas. Sem anjos, sem protetores diretos. Tinham os deuses, que eram guardiões, mas as maiorias estavam protegidos em seus mundos próprios.
Nathália é uma fada. Mas não diga isso para ela. Ela dirá que não se parece com nada em relação a Tinker Bell, embora tenha os cabelos loiros, olhos azuis, um corpo no padrão, mesmo com a barriga tão dura de trincada que parece concreto. Tudo isso em um metro e quarenta e nove de altura. Certo, ela era a Tinker Bell. Mas não tinha asas e nem orelha pontuda. Até poderia se passar por uma humana comum, se não fosse a magia. Afinal, mesmo estando em 2019, as pessoas comuns não estavam preparadas para aceitar bruxas e fadas. Tinha até os caçadores que se dedicavam em caçar e matar bruxas. E qual a diferença entre uma fada e uma bruxa? Quase nenhuma.
— Desde que a Morte nos deixou, esses monstros surgem toda hora. Lilith deseja que nós façamos algo. —Becca, uma bruxa ruiva, olhos negros, um corpo de falsa magra e de um metro e sessenta falou.
— E de que monstro estamos falando? — Nathália perguntou. Elas estavam em uma cabana na floresta. Era protegida com magia antiga. Magia da própria Lilith. Ali os caçadores nunca iriam pegar elas.
— O que sabe sobre Krampus?
— O ajudante do mal do Papai Noel?
— Isso foi o que divulgaram. Papai Noel era um bruxo que foi dominado pelo mal supremo. Ele perdeu toda a capacidade de fazer o bem. Só tinha o mal dentro dele, uma vez que o dragão primordial passou a ser seu único deus. Anjos, deuses, bruxas, fadas e outros seres, se uniram para derrotar esse bruxo das trevas. Foi uma batalha difícil. O papai Noel usou a magia da vida de muitas crianças. Mas a união deu certo e vencemos. Porém não deu para matar ele. Só podemos prender e esperar que o selo mágico nunca fosse retirado. Entretanto, com o sumiço de Azrael, a magia ficou sem equilíbrio. O Papai Noel está solto desde então.
— Está querendo dizer que Krampus e Papai Noel são os mesmos?
— Sim. E ele está solto. Sabe que ele gosta de crianças não é mesmo?
— Provavelmente porque o sangue infantil é muito puro. Para a magia é o mais perfeito que existe.
— E por que não se deve matar crianças?
— Porque não somos as bruxas da convenção? — Nathália deu um sorriso de canto.
— Bondade é outra parte do equilíbrio. É o que nos fazem seres humanos. Quando você deixa de lado a natureza humana, você se torna num monstro. Para os caçadores, podemos ser esses seres assustadores. Porém não somos. E sim, você está certa. Não somos as bruxas da convenção.
Dito isso, elas arrumaram suas coisas e partiram atrás do monstro. Nenhuma das duas se perguntou se conseguiriam, afinal, precisou de anjos, deuses, bruxas, fadas... Só para prender o monstro. O que duas bruxas (sendo uma delas uma fada que odeia fadas) conseguiriam?
A verdade que Lilith confiava muito nas duas. Sempre esteve do lado de Nathália, quando essa aprendeu tudo entre os celtas antigos. E também com Becca, quando essa era líder das bruxas de Salém, sendo a única a escapar com vida. As duas passaram por muitas coisas na vida. Coisas de mais para um simples humano. Mas para elas não. Ambas foram forjadas no fogo e no sangue. Coisa que os antigos que lutaram contra Krampus não tiveram.
Becca tinha um marido, seu nome era Ryan. Ele era um pastor e membro dos caçadores. Loucura? Não. Ryan sabia de tudo. Foi ele que salvou Becca no passado. E por isso Lilith agraciou os dois com a vida longa. Ryan era um infiltrado. E por isso conseguia informações privilegiadas. Como o sumiço de várias crianças na Suíça. Os caçadores acreditavam se tratar de magia negra. Não estavam errados. Foram enviados muitos caçadores da Europa até o local. Mas todos foram mortos e seus corpos secados. No caso tiveram todos os líquidos retirados dos corpos. Pareciam uvas dessecadas.
— Lutar contra o Krampus não parece legal. — Nathália falou assim que chegaram no local dos sumiços. Elas usaram um portal para sair dos EUA e chegar na Suíça.
— Ele é um bruxo experiente. Além de seguir o dragão primordial.
— Não gosto muito dele. Cara doido! — Um homem negro, com um corpo que mostrava uma barriga normal e com tranças nagô, falou.
— Laroiê Exú! O que faz aqui? — Becca perguntou ao ver o visitante.
— Não é sempre que a deusa do deserto bate na minha porta e pede um favor.
— Qual foi o favor que Lilith pediu? — Nathália fez a pergunta.
— Que eu acompanhasse vocês para ver se vale a pena.
— Ela está nos testando?
— Ela não.
— Mereço! — Nathália exclamou e ficou em silêncio
E assim permaneceram até chegarem nos Alpes. A neve ainda cobria boa parte do local, tornando a subida um pouco difícil e íngreme. Nada que fizesse as duas desistirem de subir até a caverna onde Krampus estaria escondido. Exú, o orixá, seguia logo atrás. Ele não demonstrava cansaço e nem preocupação. Seu interesse era secreto. Ao chegarem perto da caverna, sentiram o cheiro podre de corpos em decomposição. Sabiam não se tratar dos caçadores, uma vez que os corpos secados estavam jogados pelo caminho até a caverna.
— Eu não entendo. — Nathália começou. — As espadas e flechas com penas e sangue de anjos não anulam magia?
— Krampus é puramente do dragão. Sem humanidade, sangue e pena de anjo é inútil. — Becca explicou. — Nosso defeito é sermos humanos. E mesmo assim, não somos vistos como tal. Engraçado, esses acólitos, ou caçadores, sempre nos chamaram de inumanos. Mas quando encontraram realmente um... Bom, esse é o resultado. Precisamos ir até lá dentro.
— Claro que precisamos.
Ao adentrarem, encontraram restos mortais humanos. Não precisavam saber muito para notarem que eram crianças.
— Ho ho ho! Feliz Natal! — Exú falou sorrindo
— Papai Noel não é bom velhinho. — Nathália sorriu.
— Os dois querem parar de fazer piada com algo sério? — Becca disse emburrada.
— Quer que choremos e saímos daqui correndo? Porque é o que deveríamos fazer. — Nathália respondeu.
Não demorou muito até perceberem a figura de um homem velho com uma longa barba branca. Sua roupa era um casaco de pele de animal. Usava uma longa bota preta. Seu rosto tinha o vermelho sangue por toda a face. Principalmente pela barba. Quando sorriu, mostrou os dentes de tubarão. Nathália e Becca sabiam que estavam em frente de um verdadeiro monstro.
— Não são crianças. — O Krampus falou. — Mas beberei o sangue de vocês. Não. Vocês possuem magia. Meu Senhor, irá gostar do sangue de vocês. Sim. Ele quer vocês. Ele diz que a bruxa do deserto mandou uns lanchinhos para ele. Sim. São vocês.
— Você está maluco! Lilith mandou a gente para matar você. — Becca gritou.
— Matar eu? Eu não posso morrer. O anjo da morte não existe mais. Mas mesmo que existisse, nem ele teria como me vencer. Meu Senhor é por mim.
— Chavajoth? — Becca perguntou. — Ele está aqui?
— Você é corajosa de mais até para pronunciar o santo nome dele?
— Por quê? Ele é o Voldemort agora? O Você-Sabe-Quem? — Nathália pronunciou com sarcasmo na voz.
— Somente almas perfeitas podem ter a autorização para pronunciar esse tão santo nome. Não seres desprezíveis como vocês. Humanos! Raça impura!
— Legal! Odiados pelos humanos e monstros. Estamos bem feitas na vida! — Nathália comentou. — Aqui para o Chavajoth! — Ela mostrou o dedo do meio das duas mãos para o Krampus.
Isso fez com que monstro atacasse os três. Exú saiu do caminho enquanto Krampus tentava matar as duas. Suas investidas eram rápidas, Nathália e Becca tentavam com esforço saírem do caminho e até contra atacarem. Mas só podiam se defender..
— Aí Exú! Quer ver algo maneiro? Talvez seja a intenção de Lilith. — Nathália perguntou.
— Ah é? E o que quer que eu faça?
— Segura o Papai Noel um pouquinho!
Exú não esperou mais. Ele saltou no monstro e o segurou com um abraço de urso pelas costas.
Nathália e Becca pararam um pouco para respirar. Nathália agradeceu e fechou os olhos. Ela sabia o que tinha que ser feito. Ela percebeu a intenção de Lilith no instante que adentrou a caverna. Algo que nunca se quer imaginaria na época que vivia no Alemão no Rio de Janeiro. Todas essas lembranças eram de uma vida já passada. Nem sabia porque estava remoendo tudo. Rio de Janeiro, Inglaterra do século 5, Nibiru... Tudo isso era passado.
Tinha um motivo para ninguém vencer aquele monstro. Só seria possível com o poder da alma. Da própria energia da vida. Do auto sacrifício. Da entrega completa. Ninguém estava disposto a entregar toda a sua alma para vencer um inimigo. No íntimo todos queremos os louros do sucesso. E isso não se recebe quando se morre. Ainda mais quando toda a sua existência é apagada da história. Ninguém colocara seu nome numa rua ou escola, se ninguém se lembrar de você.
Nathália permanecia de olhos fechados. Estava meditando. Odiava fazer isso. Odiava ser fada, odiava ser humana, odiava tudo. Odiava ela mesmo. Quem é o idiota que vai entregar tudo para derrotar um monstro? O que ela ganhava com isso? Quem iria se importar? Tá certo que ninguém iria odiar ela por matar o Papai Noel. Mas droga! Tinha que ser ela?
De repente uma luz surgiu do seu ventre. Becca arregalou os olhos quando viu. Exú levantou uma sobrancelha. Depois uma luz mais acima de acendeu. Seguida por outras três que formavam uma linha pela barriga da Nathália. Cinco luzes que deixaram a caverna como se fosse dia. Ela permanecia de olhos fechados e respirava com calma.
Não demorou muito e as luzes se uniram formando um grande círculo.
— Me salta sua aberração! — O Krampus gritou enquanto Exú o segurava. — O que ela está fazendo?
— Se é o que estou pensando, vou beijar a boca da Lilith. Claro! Depois de descobrir onde ela está. Até porque ela envia uma coruja.
Do círculo que as luzes formaram, dois círculos surgiram unidos por uma linha que ia de um centro ao outro. As divisões continuaram até formarem uma flor com oito círculos. Um conjunto de linhas que ia de um centro de um círculo, até o centro de outro, formou um cubo com uma luz brilhante. Esse cubo criou terra ao redor da Nathália. Depois mais linhas se acenderam formando um tetraedro, no que surgiu fogo. Após isso,  foi a vez de um octaedro criar ar, seguido de um icosaedro com água.
— Mestre dizer para impedir o dodecaedro. — Krampus soltou um berro e com sua força jogou Exú longe.
Ele tentou atacar a Nathália. Mas ainda no ar percebeu que o dodecaedro tinha se formado.  Várias linhas estavam brilhando. Todas formavam um grande cubo. O dodecaedro brilhava com muita energia. Ao chegar perto da Nathália, a fada abriu seus olhos. Eles tinham um brilho muito branco que irradiava uma forte luz. Ela pegou o Krampus pelo pescoço. Sua fisionomia não tinha nenhuma emoção. O demônio sabia que iria morrer. No mundo tinha forças muito maiores do que a Morte. Forças que seu mestre temia. Força que foi dado aos humanos na criação, mas esses esqueceram. Porém ali estava esse poder. O Krampus era pura trevas e a Nathália era a luz pura. As trevas não suportam a luz.
Quando fechou e abriu os olhos de novo, Nathália contemplava o que tinha feito. Ela segurava um casaco de pele na mão. Na caverna nem sinal do Krampus. Ela se soltou quando ouviu uma salva de Palmas. Exú era só alegria.
— Realmente acho que vou beijar a Lilith. Assim que achar ela.
— Lilith sabia disso? — Becca perguntou.
— Por que acha que ela enviou vocês aqui? Creio que você deverá treinar a Nathália para aguentar esse poder. Eu tive que mexer uns pauzinhos para ela permanecer viva.
— E por que você me quer viva? — Nathália questionou.
— No futuro você virá até mim com as tuas amigas. Esse será o preço.
— Preço pelo o quê?
— Pela minha ajuda. Ora! Becca, treina ela para aguentar o poder. — Dito isso, ele sumiu.
Mais tarde voltaram para a cabana, onde Ryan esperava a esposa com uma comida caseira. Eles tinham muito o que conversar. E Nathália teria que treinar.

Nota: Esse conto originalmente era para ser postado como um especial do livro A Magia da Criação, porém nunca foi postado. Embora faça parte do canon do livro, será exclusivo dessa antologia
A magia que Nathália usa, é conhecida como cubo de metatron. As formas geométricas citadas fazem parte do cubo. Círculos são as formas mais comuns e simples, mas o dodecaedro é extremamente avançado. Pois é a representação do quinto elemento, o éter, ou espírito. Por ser uma humana, Nathália deveria ter sido apagada por causa disso. Já que era o poder de Deus.

Autor: maicondecapreo

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