Capítulo 6 - Desafio

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Sábado, 2:35AM.
 
Magali
            A maioria das meninas ‘tava dormindo, abraçadas umas nas outras no quarto da Isa, que já tinha voltado da casa do Luca. Eu também devia estar dormindo a essa hora, mas tinha um calor infernal dentro de mim, e uma Mônica que soluçava baixinho deitada no mesmo colchão de solteiro que eu.
            A gente ‘tava abraçada, ela bêbada demais pra esconder que o beijo do Cebola a magoou.
            E eu bêbada demais pra não ficar excitada aquele mesmo beijo.
            Nós duas estávamos de “boa”, mas a festa deu uma esfriada depois daquilo. A Mônica levantou e foi direto pro quarto da Isa; o DC fechou a cara e foi embora; o Cebola fingiu que nada tinha acontecido, e eu só fiquei lá no chão, confusa e quente.
            Então a música foi desligada, a Isa chegou, e colocamos colchonetes na sala para os meninos que ficaram.
            Olhei pra Mô no momento em que ela levantou e saiu apressada, tentando não tropeçar na Marina e na Denise que estavam mais perto da porta. Corri atrás dela e minha amiga escancarou a porta do banheiro, se ajoelhando do lado do vaso e botando tudo pra fora.
            Segurei o melhor que pude no cabelo curtinho e tentei não olhar, ou eu seria a próxima a passar mal.
            Quando a última convulsão parou, ajudei ela a levantar e lavar o rosto na pia.
            — Desculpa por isso, Magá, eu só... ‘Tô um caco desde que tudo aconteceu. — Ela murmurou envergonhada e eu passei a mão nas suas costas.
            — Ei, tudo bem aqui? Escutei um barulho e subi pra ver. — escutei a voz do Cê e olhei pra porta aberta banheiro, onde ele ‘tava, já com uma camiseta e não só de cueca.
            — Deve ter subido pra tirar fotos das meninas dormindo, isso sim. — Mônica destilou, e eu já não sabia mais o que fazer pra evitar Terceira Guerra Mundial, porque ‘tava na cara que ele ia rebater.
            — Olha gente... — sussurrei, afinal, as meninas ainda estavam dormindo. Andei até o Cebola e empurrei ele dentro do banheiro também. — São duas da manhã, eu ‘tô louca e geral tá cansado dessa briguinha infeliz! — fechei a porta com eles dentro, trancando pelo lado de fora. — Então vão se foder! Da forma como melhor preferirem! — sussurrei alto o suficiente para que escutassem e saí batendo os pés até o andar de baixo.
            Os meninos lá embaixo ainda estavam acordados assistindo algum filme na televisão. Olharam quando desci as escadas, então ignoraram e voltaram pra tela.
            Fui até a cozinha, mas não me dei ao trabalho de ligar a luz, mesmo que a iluminação da sala não chegasse até lá. Como era pequena, não foi difícil achar a geladeira e abrir pra ver se ainda tinha sobrado brigadeiro.
            — Sabe que nem me surpreende te ver assaltando a geladeira de madrugada, magrela?
            Pulei de susto quando ouvi aquela voz atrás de mim, me virando pra ver o Cascão sentado no chão do canto da cozinha, com o prato de brigadeiro no colo.
            — Porra, quer me matar de susto, Cássio? — Me sentei ao seu lado, puxando o prato pra mim e pegando a colher da sua mão. — Me dá isso aqui.
            —  É a primeira vez que fala comigo hoje, Magali. Porra, você quase arrancou a roupa do meu melhor amigo na minha frente. — comentou, mas continuei sem responder. — Isso ‘tá enchendo o saco já.
            Respirei fundo, largando os ombros e me apoiando nele.
            — Eu sei, Cas, é que... — bufei, o álcool no organismo ainda fazendo efeito em mim. — Por que não teria hipótese alguma da gente se pegar? Você me magoou, poxa. O que acontece? Não faço seu tipo? Não me acha atraente?
            Ele me encarou sério por alguns segundos e depois riu. Gargalhou como se eu ‘tivesse dito a maior besteira já proferida na Terra. Riu tanto que seus ombros chacoalharam, me fazendo desencostar dele o encarar também.
            — Já entendi. Obrigada. — resmunguei e comecei a tentar levantar, equilibrando o brigadeiro na mão direita. Ele me puxou pra baixo de novo, fazendo minha bunda bater com força contra o chão.
            — Não, não é isso. — Respirou fundo enquanto se acalmava. — Magá, você tá bem louca, né? — concordei com a cabeça. — Então foda-se, você não vai lembrar disso amanhã. — com certeza minha expressão tinha uma interrogação bem grande, o que fez ele prosseguir, agora já sério. — Magali, você é gostosa pra caralho, meu. Não tem a mínima noção de que se a gente não fosse comprometido, eu já ‘tinha te dado ideia há muito tempo?
            Olhei atônita pro meu amigo, com a colher de brigadeiro a meio caminho da boca, e congelei. Ele vivia fazendo esse tipo de brincadeira, mas nunca com um ar tão decidido.
            — Quê?!
            — Você perguntou e eu ‘tô respondendo, ué. Tu faz muito meu tipo, magrela, e mesmo que não fizesse, eu faria virar. — ele tirou a colher da minha mão e levou até a própria boa, lambendo lentamente o doce dali. — Mas eu falei aquilo porque... Poxa, você namora há anos, somos amigos desde sempre, então não tem por que alguém desconfiar que a gente se pegaria em segredo. — Sussurrou a última parte e virou os olhos pra mim, pegando mais doce e trazendo até os meus lábios dessa vez. — Né?
            Abri a boca pra receber a colher, e espero que ele não tenha escutado o barulho vergonhoso que escapou da minha garganta quando senti o gosto de brigadeiro. Não desviei meus olhos dos seus. Eu com certeza não estaria fazendo isso se estivesse cem por cento lúcida, correto?
            Vi pela primeira vez o rosto do Cascão começar a ruborizar conforme seus olhos acompanhavam meus lábios, e não pude evitar um sorriso quando devolvi a colher já limpa para o prato.
            — Você duvida muito da minha capacidade, Cássio. — E mandei todo o resto do mundo ir se foder antes de tomar impulso e passar a perna direita sobre ele, sentando uma perna de cada lado de seu corpo. — Eu consigo dar motivo pra galera desconfiar que a gente se pega em segredo. — sussurrei no seu ouvido, vendo uma boa parte de pele se arrepiar.
            Ele espalmou a mão esquerda na minha coxa, a outra tirando o prato de brigadeiro do meu colo e colocando no chão ao nosso lado. Minhas mãos subiram pro seu cabelo, enrolando nos cachinhos dali.
            — Não brinca comigo assim, magrela. — riu contra meu pescoço, depositando um beijo bem leve ali e apertando minhas pernas com as mãos, como se estivesse se controlando.
            — Pensei que, da turma, você fosse o que mais gostava de brincar... — sorri e aproximei nossos rostos, puxando seu lábio inferior entre os dentes, mas sem beijá-lo.
            Eu não ‘tava realmente pensando no que ‘tava fazendo, só agindo pela motivação dos três últimos shots de tequila e o beijo que tinha me acendido. Já tinha fantasiado como seria beijar com o Cascão antes: se as mãos seriam firmes, se o beijo seria agressivo, e se ele me faria suspirar de tesão; mas tudo isso tinha sido resultado das minhas noites solitárias, onde a Mônica escapava com o Cebola, o Quim trabalhava até tarde, e só me restava a companhia das mensagens do meu melhor amigo.
            Ele olhava pra minha boca como se estivesse com fome e só eu pudesse alimentá-lo; as mãos já tinham ido até a base das minhas costas, me puxando cada vez mais perto. E eu podia sentir a junção onde nossos corpos se encontravam ficando cada vez mais quente. Seu hálito batia de leve no meu rosto, que estava a não mais de 3 centímetros do seu.
            Eu estava prestes a jogar 11 anos de namoro no lixo, tanto o meu quanto o dele, só pra suprir a maldita curiosidade de como seria a sensação de ter aquela boca na minha. Depois de tantos anos como melhores amigos, seria estranho? Ou seria como se encaixasse, e nós soubéssemos exatamente o que o outro gostava?
            — Foda-se... — ele murmurou, como se pensasse o mesmo que eu, então grudou nossos troncos, me fazendo suspirar, e aproveitou a oportunidade pra colar sua boca na minha.
            Ele tinha gosto de brigadeiro e essência de chiclete, e a sua língua se enrolava na minha sem pedir permissão, como se estivesse tomando algo que já era dele. Era um beijo diferente do que eu estava acostumada; era agressivo, forte, as mãos não tinham medo ou timidez, elas me apertavam e me moviam pra me colocar da forma como ele quisesse.
            Ele chupou minha língua e eu gemi na sua boca, arranhando uma boa parte da nuca. Precisei me afastar pra respirar, já que meu corpo estava apertado contra o seu e não tinha como eu parar de me mexer contra ele. Os beijos desceram pro meu pescoço no mesmo momento em que a ideia surgiu na minha mente.
            — Cas... — chamei, recebendo apenas um “hum?” como resposta, sem realmente me olhar. — O que você acha de...
            — Cascão, cadê a Magal... Eita porra! — praticamente pulei do colo do Cascão, como se queimasse, enquanto o Titi irrompia pela cozinha e nos flagrava. — Na cozinha não, gente, qualquer um pode pegar! — abaixou o tom de voz e me ajudou a ficar de pé. — A Mô ‘tá passando mal, o Jeremias tá sumido e o Cascão é o único que não bebeu hoje. — Olhei pro Cas, que também tinha levantado. Ele não ‘tava bêbado? — Então, ele dirige e o Cebola vai com eles.
            Virei pro Titi, piscando algumas vezes pra me situar e poder pensar sem toda a névoa de bebida e tesão na minha mente.
            — De jeito nenhum, eu vou junto! — respondi, já empurrando ele da minha frente e subindo as escadas com os dois no meu encalço.
            A primeira porta à esquerda era dos pais da Isa, então foi uma surpresa quando ela se abriu e saíram de lá o Xaveco, a Denise e o Jeremias, todos vermelhos e com nada mais que as roupas do jogo. Mas não tive tempo pra supor nada, só continuei até a porta da direita, onde havia trancado os dois.
            Aparentemente minha amiga tinha arrombado a porta, porque agora ela ‘tava aberta e o Cebola segurava a Mônica, que tinha desmaiado.
            — Que porra...? — comecei, mas ao invés disso só corri até o quarto das meninas, tropeçando em várias delas enquanto alcançava a bolsa da Mô com os documentos dentro.
            — Ela ficou muito nelvosa, alombou a porta e depois só caiu. Por pouco não bateu a cabeça. — Cebola explicava, enquanto nós descíamos as escadas carregando minha amiga.
            Não deu tempo nem de trocarmos a roupa, o que resultou no Cascão só de samba-canção¹ dirigindo bem acima do limite de velocidade.
 
~*
            — Então vocês querem que eu acredite que vocês, seminus e com as pupilas dilatadas, não sabem como metilenodioximetanfetamina² foi parar no sistema da sua amiga? — perguntou o médico de plantão pela terceira vez e nós só negamos com a cabeça novamente.
            A verdade é que a Mônica tinha tido uma badtrip ³, de acordo com as enfermeiras, e agora estavam insistindo nós déssemos o endereço da festa, assim como queriam que os garotos apresentassem documentos.
            Só eu dei entrada como acompanhante, afinal, a Mônica e eu já ‘tínhamos feito 18. Eles não.
            — Doutor, com todo o respeito, eu nem sei o que é essa metilde-não-sei-o-quê-lá. — falou o Cascão, recebendo um beliscão no braço de minha parte.
            — Metilenodioximetanfetamina, babaca, é cristal. — respondeu o Cê, que tinha ficado sóbrio num instante assim que chegamos no hospital. — Mas ninguém estava usando drogas, doutor, era uma reunião pequena, alguém teria visto.
            — Com certeza o exame de qualquer um aqui daria positivo. — resmungou o médico, tirando uma lanterna do bolso e apontando para a pupila de todos. — Talvez o seu não. — murmurou quando parou no Cascão. — Mas isso é mais comum do que eu gostaria de admitir, provavelmente alguém colocou na comida, bebida, ou qualquer coisa que estivessem consumindo.
            Ele nos deixou ali, com a promessa de que a Mônica ficaria bem, só precisava passar essa noite no soro, mas me proibiu de continuar com ela. Nós nos entreolhamos. Quem teria coragem de contar pro seu Sousa, caso a Mô não estivesse bem amanhã?
            — É isso, galera, vamos voltar que eu ‘tô caindo de sono. De manhã a gente volta pra pegar a Mô. — propôs o Cascão.
            E nós não tivemos outra opção a não ser seguir os três pra casa da Isa, não sem antes o Cas obrigar o Cebola a sentar no banco de trás para eu ficar com o do passageiro.
 
~*
Domingo, 10:54AM.
            Minha mãe bateu na porta do quarto de novo, mas eu não tive vontade de levantar pra abrir. Não saí do quarto desde que voltei do hospital, no sábado de tarde, depois de pegar a Mônica.
Virei na cama, com o pensamento longe, na noite de sexta. O Cas e eu não conversamos depois daquilo. Até fomos buscar a Mônica juntos, mas o caminho foi silencioso, fato que fez o Cebola perguntar se havia acontecido algo.
            E realmente havia. Quer dizer... Eu beijei meu melhor amigo, me esfreguei nele, e eu quis tudo isso. E ele também, né? Ou então ele não teria enfiado aquela maldita colher na minha boca. Ou teria? O Cascão sempre foi cheio de brincadeiras comigo, mas será que ele teria ido tão longe só pra me tirar do eixo?
            Ou ele também queria secretamente saber como seria caso a gente encaixasse? Porque nós encaixamos. Perfeitamente.
            E foda-se, porque não havia mais nada a ser feito. Ele tem a Cascuda há anos, a ama. E ela ama ele. Porra, eles se amam.
            E eu tenho o Quim, há quase tanto tempo quanto eles dois. Mesmo que a chama entre nós tenha se apagado, nós não terminamos, eu o traí, e isso me consumia a cada hora que passava.
            — Magali, filha! — minha mãe chamou de novo, e dessa vez abriu a porta sem esperar resposta. — O Quim está aqui, meu amor. — comunicou, dando lugar pra que ele passasse pela porta, e logo nos deixou sozinhos.
            Na cabeça da minha mãe, o problema claramente era que o Quim e eu havíamos brigado, logo, com ele aqui, eu ficaria bem novamente.
            Ele arregalou os olhos e enrugou um pouco o nariz quando me olhou. Claro, ele não ‘tava muito acostumado a me ver de moletom com o cabelo pra cima, e vários potes de sorvete empilhados na escrivaninha.
            — Nossa, Magá, se eu soubesse que você estava assim, teria vindo antes, minha linda! — ele se sentou ao meu lado na cama, me puxando para um abraço.
            Meus olhos arderam e eu puxei o ar com força, me sentindo impura, suja, como se estivesse entrando em águas cristalinas com a roupa cheia de lama.
            Exceto que o Quim não era tão puro assim.
            — Por que você disse aquilo? — Sussurrei enquanto sentia todo o ódio e mágoa que estava passado me preencherem. — E por que veio aqui só hoje?
            Ele se separou de mim, coçando os cabelos e olhando ao redor. Ele sempre fazia isso quando estava procurando uma resposta.
            — Desculpa, Magá, é que ‘tava muito corrido na padaria e...
            — Joaquim, um cara quase me agarrou, levou pra sabe-Deus-onde, e fez o que queria comigo. — falei de uma vez, vendo ele ficar mais pálido que o normal. — Sabe quem foi que me salvou? O Cascão e o Cebola, não meu namorado. Mas às vezes... — respirei fundo, sentindo as lágrimas escorrerem quentes pelo meu rosto. — Às vezes eu me pergunto se você realmente se sentiria mal se algo assim acontecesse.
            — Magali, como você pode pensar algo assim? Eu te amo! — justificou, segurando uma de minhas mãos e utilizando a outra para secar meu rosto. — Mas tudo tem andado tão corrido, e você tem essa mania de sair tarde da noite, Magali. Você é tão linda, e eu tenho medo de você encontrar alguém melhor que eu...
            — Pois então comece a organizar melhor seu tempo, porque antes eu achava que era pura paranoia da sua cabeça, mas você tem razão, Quim. — parei de chorar, olhando no fundo dos seus olhos. — Eu também acho que posso arranjar alguém melhor, que não me largue todos os fins de semana, que não tenha pavor de dizer um simples não pra o próprio pai! Ah, é claro, e talvez um sogro que não me odeie! — gritei tudo de uma vez, levantando da cama para tentar me controlar.
            Parei de costas pra ele, olhando pela janela a casa em frente à minha. A casa dele. Era divertido como a gente se comunicava pelas janelas do quarto quando crianças. Foi engraçado quando ele fugiu por essa mesma janela anos atrás, quando estava de castigo. Ele sempre teve habilidades pra fugir. Viveu metade da vida fugindo de água, e eu nem sabia como ele tinha tanto êxito.
Será que eu estaria fazendo o que estou fazendo agora, caso sexta-feira não tivesse acontecido?
            E como se o universo estivesse escutando meus pensamentos e rindo de mim, vi quando ela virou a esquina da nossa rua. Vi quando abriu o portãozinho – já que provavelmente tinha a chave – e bateu na porta da frente. Vi quando ele a recebeu com um sorriso pequeno, e vi quando ela o beijou.
            Aí tudo bateu em mim de uma vez. Me lembrei de todos esses anos que eles tiveram um ao outro, e como o Cascão nunca jogaria uma vida toda por algo que surgiu numa festa com bebida batizada.
            E eu deveria jogar? Minha vida toda foi namorando o Quim, eu nem saberia viver uma vida de solteira. Só havia beijado três pessoas na vida, e duas delas fora há menos de 48 horas atrás. Desde quando esses sentimentos pelo meu melhor amigo haviam surgido? Será que eles realmente eram reais, ou fruto de uma – como disseram as enfermeiras – badtrip?
            Mais uma chance. Era isso.
Uma chance para ele seguir com a futura noiva. Uma chance para eu não jogar tudo aos ares por algo incerto.
Mais uma chance.
Pra nós dois. Por nós dois.

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