O dia tinha começado com os braços a arrastarem malas para dentro. Vozes miúdas e graves estavam circundantes cada uma a ser respondida, existiam pessoas de diversos tamanhos enfileiradas como a ordem mandava para depois darem entrada no navio que as levaria daqui . Existiam algumas daquelas mulheres de cabelos compridos soltos, elas estavam sorridentes. Talvez tivessem arranjado um bom marido que eles fizesse os caprichos e agora deixavam a família para sentir " livres " .
Foi me ensinado que o inferno não existe pois são os humanos que o criaram com o seu ódio e perversidade originando assim o inferno nelas mesmo ou nas pessoas que são manipuladas. Era errado andar por aí a julgar mas eu não achava correto elas deixarem as suas famílias. Talvez, muito provavelmente, as famílias não as deixassem sair da gaiola e estas sentiam-se presas . Ao encontrar a sua metade livravam-se da vida que até instantes levavam.
- O pai já está lá dentro em nossa espera, ele deve também estar na procura de um quarto para nós. Vamos lá anda - a mãe pegou-me pelo pulso enquanto nos dirigimos ao navio - Lá está ele.
A mãe continuou a segurar o meu pulso enquanto que a sua mão esquerda estava ocupada a acenar ao meu pai, da sua garganta produzia sons e esses sons diziam o nome do meu pai:
- ah, vocês estão aí. Já encontrei um lugar para nós ! - o meu pai exclamou alegremente
-Pai, quero ver o quarto e desenhar! - sorri inocentemente para o meu pai - a mãe tem o caderno da Dona Isabel?
Ela acenou levemente com a cabeça afirmativamente. Dona Isabel havia sido uma ama que me acompanhava muitas vezes, era amiga da família muito chegada. Era com ela que fazia sanduíches para a minha mãe de tarde quando descansava das atividades domésticas. Já não a via há uns meses, tinha mudado de cidade. Recebi dela um pequeno diário, sem margens e linhas. Era nele onde escrevia pensamentos infantis assim como pequenos desenhos apoiados na fantasia de uma imaginação fértil.
Lentamente a minha mãe se debruçou para chegar até às minhas mãos, beijou-as e entregou o caderno que tanto apreciava.
-Já podemos ir para o quarto? - perguntou ao meu pai discretamente, sem sobressaltos.
- Sim, já podemos - sorriu-lhe modestamente.
Chegámos ao pequeno espaço de quatro paredes, eram claras azuis e havia uma pequena janela circular que dava asas ao mar. Via-se o mar de lá, calmo e azul, sem nada para dizer. Vi alguns peixes a saltar para depois voltarem ao lugar de onde eram originários. Depois de observar o espaço tentativamente, já me havia acostumado com o ambiente deste. Dei um pulo entusiasta ao chão para me sentar com as pernas à chinês e abri o caderno sobre as minhas pernas já cruzadas. Tirei uma caneta que repousava no pequeno bolso do meu casaco.
- Ângela devias ter cuidado com as tuas roupas para não as sujar, por vezes demora muito tempo a sua secagem - suspirou o meu pai já meio impaciente.
Eu não protestei, só o observei pelo canto dos meus olhos e afirmei que sim silenciosamente num movimento de lábios pequeno. Contudo, permaneci sentada e atraída a desenhar num canto de uma folha .
A viagem foi calada, silenciosa. Por vezes só ouvia as ondas a baterem-se contra o navio e um pequeno murmúrio de humanos de fundo, incluído o som emitido pelos meus pais. Tivemos também que partilhar os nossos jantares e almoços com outros que navegavam , aprendemos imenso pelo cruzamento de culturas que o navio oferecia , a parte que mais gostei desta minha viagem. O facto de saber que não éramos os únicos na larga embarcação era reconfortante. E as músicas que eram tocadas nas noites eram muito energéticas, antes de adormecer dançava e assim dormia descansadamente.
Por um momento fui ver a luz do luar na companhia dos meus pais por estes terem medo de me afogar, o mar puro coberto por um manto de prata. Era tão belo e como existiam menos luzes artificiais naquele imenso vazio víamos com nitidez as estrelas que componham o céu. Queria roubar todas aquelas estrelas e guardá-las num pequeno saco que a minha mãe tinha feito quando tinha sete anos. O quanto eu queria que ela me ensinasse croché ... Ela havia prometido, mas agora na viagem era melhor não, talvez estivesse a tentar-se abstrair e não a queria incomodar. Muito provavelmente passado um tempo da nossa chegada poderíamos contentar com a aprendizagem no crochê.
No navio observei atentamente cada rosto dos passageiros e tenta desenhar, cautelosamente sem ser notada. O caderno de Dona Isabel já tinha diversas páginas das minhas artes , limitava-me a largar a língua para fora quando achava algo difícil de desenhar. Encontrava-me completamente encolhida sentada numa cadeira de madeira pondo a perna sobre a outra, numa pose descontraída porém toda contraída.
Estava absorvida pelas risadas dos passageiros, completamente distraída . Estava agora sozinha num grupo constituído de outras crianças com quem não falava, falavam dos seus sonhos e eu continuava a desenhar mas agora contentava-me a desenha-las. Um rapaz aproximou-se de mim sorridente, curioso com os meus rabiscos:
- Ah ... desenhas muito bem. Maria! Ela desenho-te - virou-se sorrindo para a irmã - anda ver ... anda ver! Está muito giro!
- Ai ... tens razão, gosto muito! - disse a menina menor ao observar o meu desenho - podias me dar esse desenho?
Eu não queria dar pois aquilo era importante , é como se roubassem uma parte de mim e não gostava muito disso, mesmo assim cedi e rasguei a folha dando-lhe uma parte da minha vida. Arriscando o facto de nunca mais puder ver o primeiro exemplar, decidi então tentar fazer uma cópia do primeiro exemplo, observando com mais atenção os traços da pequena diante dos meus pés. Ela sorria e sorria na companhia do seu irmão, quem me dera ter um irmão ...
A viagem acabara com choros pois não iria voltar a ver os dois irmãos, Maria e Joaquim, mas havia os guardado nas páginas do meu livro e lá iriam permanecer ...
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Desalmadamente , Ângela
RomanceA história de simples humanos procurando o seu rumo desfrutando da companhia dos dois . Será uma longa história marcada pelas suas decisões . "o mar fez de nós meros mortais que andam pelos seus perigos fatais se alguém soubesse a tremenda dor ...