Final - A Curacanga

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Com a agulha em mãos, o aparente transe de Clarice se dissipou, e então ela se virou para falar comigo.

— Como sabia disso?

— Sobre a agulha? Bem, meus pais eram caçadores também e eles já lidaram com Curacangas, embora nunca tivessem me deixado ver uma, então sabia de alguns preparativos. Gostei da sua estratégia de pagar de sem noção com aquelas maquiagens exageradas para esconder a queimadura no pescoço.

Eu estava apontando a arma para ela, mas não pretendia atirar. Aos poucos, chegava mais perto.

— Estou te dando uma chance, Clarice. Se eu não estivesse aqui, acho que nenhum deles saberia da possibilidade de selar a maldição. Agulha virgem e linha colágeno, basta costurar o pescoço, por mais que doa, pelo menos você não vai precisar morrer.

— E você acha que ficar presa como rato de laboratório da SMB é algum tipo de alívio? — Ela riu. — A morte seria bem mais fácil.

— Clarice — Lucian também chegou perto para falar com ela. — E-estamos entre amigos aqui, não tome atitudes precipitadas. Eu vi o histórico médico da sua família. Todas as 6 gestações antes de você nascer foram problemáticas e as crianças sequer nasceram, não foi culpa de ninguém.

— Quem é você para falar alguma coisa, menino?! E "amigos" não seria a palavra que eu usaria depois de descobrir algumas coisas sobre a sua tutora aí. — Ela apontou para mim — Me diz, você é realmente uma índia? — Me perguntou com um olhar de reprovação.

— Com descendência por parte de mãe, sim. Ela era Krenak.

— É uma pena ver o que você se tornou. Traindo sua própria descendência. Se eu soubesse que estava lidando com uma índia teria sido mais cuidadosa.

— Pois é, é o tipo de informação que eu deixo de lado para evitar comentários desnecessários feito o seu. Pensou o quê? Que eu iria proteger todas as criaturas nativas dessa terra? Não sou muito fã da SMB mantendo vocês em cativeiro por conveniência, mas eu podia trabalhar para eles e tentar mudar a mentalidade das pessoas lá dentro ao mesmo tempo que defendia inocentes de criaturas bizarras como você, então estou de bem com a minha escolha.

— Eu não matei ninguém! — Esbravejou dando sinais de que poderia se transformar a qualquer momento.

— Só porque ganhou tudo o que pedia. Não demoraria até sua ganância crescer. Você forjou as certidões quando o Gonçalves pediu sua ajuda para imprimir os documentos. Depois, aproveitou minha clara suspeita da velhota e a usou como a isca perfeita. Se algo pior acontecesse, não pense que só porque não seria por suas mãos que você estaria isenta de culpa.

Houve um momento de silêncio. A luz da lua entrepassava as árvores e iluminava o rosto pálido da Clarice, que observava a agulha em sua mão.

— Ok, o tempo acabou. Preciso de uma resposta.

— O que você precisa, Kauane, como nossa chefe sempre gosta de dizer, é aprender o seu lugar.

Uma onda de chamas saiu do pescoço da Clarice assim que a cabeça se separou do corpo. Precisávamos ser rápidos para acabar com ela.

— Moleque, corre para as árvores! Estaremos em vantagem na escuridão.

A Curacanga começou a queimar os galhos das árvores para tentar derrubá-los em cima de nós. Lucian e eu corríamos em direções diferentes para despistá-la. Era como se estivéssemos em um tabuleiro, com poucas casas para onde avançar.

Ela com certeza não iria descer para um enfrentamento direto, mas era algo que eu já esperava.

— Vá para a cabana, eu resolvo isso. — Gritei para ele, que rapidamente me deu um sinal de confirmação e correu na direção do posto seguro.

Fiquei atirando para o alto com a escopeta, precisava ganhar tempo. Não conseguia enxergá-la em meio a tanto fogo e fumaça. O calor era escaldante e eu comecei a tossir. Não poderia aguentar muito, do contrário não ia conseguir correr para longe das árvores. Eu tinha um pequeno sinalizador no bolso de trás, era isso que iria me salvar.

Resolvi que era hora, saí correndo de cabeça baixa em direção à cabana. Em meio ao som dos troncos estalando com a queimada, percebi que a Curacanga passou por mim e foi direto para as árvores na extremidade. Ela iria derrubá-las para me prender nas chamas.

Rapidamente disparei o sinalizador, não demorou muito para que o som de uma caminhonete ao longe pudesse ser ouvido. O Sérgio recebeu a mensagem, e então acelerou para longe dali, com uma corda que estava ligada à estrutura da cabana, forçando a derrubada das paredes e revelando a armadilha de Boitatá.

O velho Gonçalves se superou, arranjando nada menos do que quatro canhões d'água, e todos já estavam precisamente mirados para a copa das árvores. Boitatás se disfarçam entre as árvores, então atirar com canhões para o alto, onde geralmente eles ficam, é a maneira mais simples de enfraquecê-los para o combate. Para a Curacanga, uma criatura muito menor, os tiros já acabariam com ela ali mesmo.

Logo pude sentir um chuvisco caindo sobre meu rosto e vi um crânio deformado caindo no chão poucos metros à minha frente.

A luta tinha acabado.

Pouco tempo depois, a equipe de quarentena chegou para recolher os vestígios e levar as provas para a divisão. Gláucia também chegou, e fomos conversar.

— Devo admitir que você se superou. O Gonçalves conseguiu todo esse armamento para você? Como conseguiu pagar?

— Não sei do que está falando, ele é só o senhor simpático da recepção.

— Entendo, ele valoriza a discrição, não é mesmo? Pois bem, seu pagamento chegará assim que emitirmos os relatórios, pode descansar agora.

— Ei, ei, espera aí. — Segurei ela antes que fosse embora. — Tem noção do que acabei de fazer aqui? Só um pagamento não basta, quero uma recomendação para subir de patente e voltar para a capital.

— Na verdade, haveria mesmo um avanço na patente, mas não o seu. Aparentemente a chave da investigação foi uma informação valiosa que o Gonçalves te deu sobre minha idade, mostrando que entre as certidões havia uma falsa. Nesse caso, como não partiu de você, ele quem deveria receber os créditos, mas optou por somente ser recompensado com dinheiro e permanecer como atendente da recepção.

Naquele momento eu senti que seria a próxima a explodir em chamas.

— Por que fazer isso? É a sua chance de se livrar de mim.

— Bom, primeiramente, essa sua cara de tacho para mim vale muito. Em segundo lugar, é porque, se me lembro bem, eu sou "uma vadia estratégica", não é mesmo?

Sabia que quando tinha dito aquilo, poderia tomar o troco, mas não imaginava dessa forma.

— Bastante estratégica. Use a frase completa. Até segunda.

Lucian ainda estava por perto. Com uma cara mais tímida, acho que estava se preparando para a despedida, acreditando que eu seria promovida.

— Como foi, General Kauane Silva? — Me cumprimentou prestando continência.

— Tutora Kauane Silva. — Corrigi. — Ela não vai me dar o crédito total pela caçada.

— Mas fomos nós que achamos os registros médicos, sem isso não teríamos chegado em uma prova concreta.

— Não conta como um método limpo, não tínhamos permissão oficial para acessar esses dados, e provavelmente o crédito iria para você antes de vir para mim.

— Então... Você vai continuar por aqui? — Ele não teve como esconder que estava um pouco feliz com isso.

— Fazer o quê, né? Fora que você nem é maior de idade ainda, precisa de um adulto responsável para te vigiar.

— É, e alguém com o dobro da minha idade é uma boa escolha.

— Ei, pode parar. Você tem dezesseis e eu trinta, errou por dois aí.

Rimos juntos ali por um momento, era bom trabalhar em equipe depois do que passei na capital me virando sozinha.

Tudo o que restava era simplesmente voltar para casa e esperar a próxima ligação. As criaturas continuariam aparecendo, e nós estaríamos lá, preparados para a próxima caçada.

Caça aos folclores - O mistério da CuracangaOnde histórias criam vida. Descubra agora