Capítulo 1

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental. 

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Ao ter seus cabelos ruivos trançados por uma criada enquanto outra maquiava seu rosto, Mylène não conseguia deixar de pensar no quanto aquela cena não tinha nada a ver com a vida que imaginara para si.

Era claro que gostava de usufruir das riquezas trazidas pelo negócio de seu pai, a comercialização de tecidos: morava numa casa espaçosa, contava com criados para apoiá-la, havia sempre o melhor da gastronomia Beau a sua disposição. Seus privilégios eram incontáveis e sentia-se imensamente grata por isso. Porém, se pudesse trocar qualquer parte da sua vida confortável para ter um pouco mais de autonomia, ela o faria sem pensar duas vezes.

— Senhorita Mylène, já terminamos. Está de seu agrado?

Mylène virou-se completamente para o espelho para admirar o resultado final. As tranças haviam se transformado num penteado elegante. As bochechas estavam rosadas, fazendo com que seus olhos grandes e verdes se destacassem ainda mais. Agora faltavam os seus toques pessoais.

— Muito obrigada. Está impecável como sempre, queridas Rosane e Laila — Mylène comentou com um sorriso agradável — Mas gostaria de terminar a arrumação sozinha. Vocês poderiam se retirar por um instante, por favor?

— Claro, senhorita Mylène — Rosane respondeu pelas duas empregadas e, após uma breve reverência, as duas se retiraram. Sabiam que se a jovem Dupain precisasse de mais alguma coisa, tocaria a sineta que sempre estava por perto para chamá-las.

Assim que a porta se fechou, Mylène suspirou alto, ignorando completamente os bons modos da sociedade que seu pai sempre insistia que cumprisse, mesmo dentro de casa. Na verdade, não havia muito mais para arrumar; queria somente ficar mais um tempo sozinha.

Deveria estar animada por seu pai permitir que visitasse o festival da primavera. Entretanto, toda a possibilidade de alegria se esvaiu quando o noivo confirmou que a acompanharia no passeio. Era para ser um momento só dela, em que caminharia pelas ruas do centro, veria apresentações de dança e compraria todo artesanato romani que lhe agradasse. Dessa forma, desfrutaria de uma última centelha de diversão antes do casamento.

Mas agora era tarde demais para impedir que Gaspard se juntasse a ela. E quando parava para pensar nos termos impostos no futuro casório, Mylène concluía que tinha tido muita sorte em encontrar alguém como o noivo, que respeitava sua forma de pensar e apoiava suas decisões, mesmo que à sua maneira.

Ainda assim, uma voz sussurrava dentro dela perguntando: você vai se satisfazer com isso?

Porém, não poderia se dar ao luxo de ouvir essa voz. Não agora, quando estava tão perto de alcançar seu maior objetivo.

Resignada, ela se levantou, pegou uma pequena bolsa e se certificou de que as moedas para gastar no evento e a chave do Refúgio já estavam lá. Agora faltavam apenas um lenço, o bálsamo para emergências e o vidrinho de "álcool" que sempre carregava onde quer que fosse.

Manusear aqueles objetos melhorariam um pouco seu humor. Pelo menos ela realmente estaria no festival, algo que não fazia há quatro anos, desde o falecimento de seu irmão mais velho, León, na Guerra do Leste. Pensar nele ainda era extremamente doloroso, mas os momentos de alegria entre eles sempre acabavam vencendo a tristeza da sua partida precoce. E muitos desses momentos de alegria estavam justamente nos dias de festival, nos dias em que seus pais, por algum milagre, os deixavam viver.

Quantas apresentações de música e dança assistiram? Uma vez, num sábado, chegaram a passar a tarde inteira perto do mesmo palco para que não perdessem uma apresentação sequer. Nos intervalos, percorreram pelas barracas, comeram gratar e se divertiram com algumas crianças Romaines. Talvez tenha sido nessa ocasião que uma Romaine leu a sua mão e disse que ela estava destinada a curar pessoas. Quando estavam voltando para casa, León até se questionou:

— Será que você vai ser médica?

Sem dúvida, aquele dia estava no pódio dos dias favoritos de Mylène. Adorava se perder nessas lembranças, nos dias mais felizes em que seu irmão ainda estava vivo e tudo parecia mais fácil porque ela não estava sozinha.

Mas não era momento para devaneios. Logo mais o noivo chegaria para buscá-la. Precisaria manter a pose de boa futura esposa, precisaria ser perfeita. Como seu pai sempre lhe lembrava: a boa esposa sempre está contente, está sempre atenta para antecipar os desejos do marido, está sempre satisfeita. A boa esposa nunca quer mais do que tem, porque suas necessidades são as necessidades do marido.

Odiava ser "perfeita" porque sabia que nunca seria na realidade. Ainda assim, precisava fingir ser amável, delicada e submissa. Precisava fingir que não se questionava todos os dias como seria a vida se ela pudesse ter o que queria. Felizmente, anos de prática a haviam transformado em uma mestre na arte da atuação.

Determinada, pegou um pincel para finalizar a maquiagem que sua criada começara, passando a tinta rosa claro em seus lábios. A aparência estava perfeita, como uma boa futura marquesa em Chambeaux deveria ser. O detalhe final na sua farsa.

Os passos no corredor quebraram o silêncio do quarto. Pelo ritmo, Mylène sabia que seu pai estava a caminho, o que se confirmaria segundos depois com as batidas pesadas na porta.

— Mylène, posso entrar?

— Sim, papai — ela respondeu, já se colocando de pé e encarando a porta de seu quarto, a imagem perfeita de devoção filial.

Assim que Hugo Dupain entrou no cômodo, Mylène sorriu, estendendo os braços levemente e girando devagar no próprio lugar, exatamente como a bailarina da caixinha de música que ficava em cima de sua mesa de cabeceira. Esse era um ritual comum entre os dois para que o pai pudesse admirar as roupas da filha, todas confeccionadas com os melhores tecidos importados pelo negócio da família.

— Ah, que maravilha! Este é o linho de Hassan que trouxe da última viagem, não é? — Mylène terminou o giro e concordou com a cabeça. — Foi uma ótima viagem para todos os meus negócios. E... Ah! O azul safira combina perfeitamente com você.

— Obrigada, papai. E ele é realmente fresco, ideal para a primavera de Chambeaux.

— Ótimo! Comentarei exatamente isto para os compradores mais difíceis amanhã. Prevejo que ele vá ser bom no verão também... — ele adicionou mais para si mesmo — Mas chega de falar de negócios. Sei que é um assunto bastante complicado para a mente feminina... — Mylène nem conseguia mais se indignar com os comentários ofensivos do pai. Ele retornou ao assunto principal. — Já terminou de se arrumar?

— Sim, papai — Mylène confirmou e pegou a bolsa, passando a alça pelos ombros. — Estou pronta.

O senhor Dupain a inspecionou, porém seu olhar parou por alguns segundo em um ponto atrás dela e ele franziu a testa. Ela se virou e encontrou o jornal do dia estendido em cima da cama com a manchete "Investigação encontra fortes indícios do paradeiro do De la Source".

"Como pude cometer esse deslize bobo?", Mylène se amaldiçoou mentalmente por ter se esquecido de guardar a edição embaixo da cama. O pai não gostava muito que ela fosse uma "mulher informada". Ainda assim, Rosane trazia o jornal diário para ela todo dia, escondido. Ela o lia, deixava embaixo da cama e a própria Rosane ou até Laila arranjavam um jeito de descartá-lo depois.

— Ah! O jornal, né? Desculpe, já havia terminado de ler? Eu o peguei do seu assento, após o café da manhã. Como o Marquês Orléans lida bastante com os casos de De la Source, imaginei que acompanhar essas notícias serviriam de termômetro do seu humor. Eu não entendo muita coisa, mas tem ajudado — Mentiu, com falso constrangimento.

— Certamente uma jogada prudente — o senhor Dupain falou com certa frieza.

— Obrigada, papai — ela agradeceu com o seu maior tom de inocência e pegou o jornal da cama. — Tome. Desculpe se o aborreci.

— Não é necessário — o senhor Dupain disse, colocando o exemplar no lixo ao lado da penteadeira de Mylène.

Sem dizer mais nada, ele estendeu um de seus braços também cobertos por um tecido de Hassan bege. Ela aceitou e os dois saíram em direção ao corredor. Mylène conseguia sentir que o pai não estava nada feliz.

Ao chegar no alto da escada, ela olhou de soslaio para a direita, onde mais adiante estava o quarto da mãe. O pai, então, iniciou a descida e Mylène o acompanhava com o coração apertado.

— Imagino que o marquês já tenha chegado e não poderei cumprimentar a minha mãe, certo? — ela perguntou de forma casual, tentando disfarçar a imensa tristeza.

— Exato. Você pode cumprimentá-la ao voltar. Aposto que ela vai compreender.

O "aposto que ela vai compreender" soava como um "isso não importa". Mylène gostaria que ele ao menos fosse mais respeitoso, pois era o único responsável pela situação da mãe, mas apenas sorriu e não teceu nenhum comentário, mascarando mais uma vez seus verdadeiros sentimentos.

Quando finalmente chegaram à porta da sala de visitas, o senhor Dupain virou-se para sua filha, deixando suas feições gentis de lado. Quando não havia ninguém por perto, ele mostrava quem era de fato: um ser humano terrível. Seu semblante se tornara tão distorcido que suas sobrancelhas escuras pareciam se juntar numa só. Ele a encarava com os olhos verdes herdados por Mylène ao relembrá-la:

— Comporte-se no festival. Nada de se empolgar com as danças ou tentar leituras da sorte, como fazia com o seu irmão. O marquês não gosta de festas e muito menos dos Romaine.

Ela sabia. Todos em Chambeaux também deviam saber. E esta era mais uma das razões por estar tão desanimada em ir ao festival com o noivo.

— Sim, papai.

— Lembre-se de que o casamento de vocês se aproxima e não queremos dar motivos para que ele não aconteça.

Mylène segurou a vontade de gargalhar. Casamentos eram apenas uma outra forma de fazer negócio, porém o senhor Dupain realmente não desconfiava o quanto o título de marquesa seria muito mais vantajoso para ela do que para ele.

— Sim, papai.

— Além disso, Avril está muito empolgada com o casamento — O senhor Dupain continuou e Mylène mordeu a língua, sentindo a raiva subir pelo seu peito. — Seria terrível se a melancolia dela retornasse em decorrência dos maus atos da única filha.

Mylène mal conseguia disfarçar sua aflição. Seus nervos sempre ficavam à flor da pele quando o Senhor Dupain ousava tocar no nome de sua mãe e ele sabia muito bem como usar isso contra Mylène. Felizmente, ao mesmo tempo, a mãe era a sua principal fonte de força para seguir em frente com tudo que estava fazendo. Assim, a filha se recompôs rapidamente e disse:

— Não vou decepcioná-lo, papai.

O senhor Dupain enfim pareceu ficar satisfeito com a obediência da filha. As sobrancelhas voltaram ao lugar, seu meio sorriso ardiloso reapareceu e ele abriu a porta da sala de visitas.

Lá estava o Capitão do Oeste, o marquês Gaspard Orléans, sentado em uma das poltronas. Ao vê-lo, Mylène prendeu a respiração por alguns segundos. Quem visse de fora, acharia que essa reação estava relacionada com a beleza estonteante do rapaz, com sua pele marfim, seus olhos acinzentados e cabelos castanhos sempre presos num rabo de cavalo firme, mas sua mente estava no andar de cima, no quarto que a mãe ocupava.

Quando Gaspard os viu, uma expressão esquisita passou por seu rosto por alguns segundos antes que repousasse a xícara que estava segurando para levantar de forma elegante e cumprimentá-los.

Mylène tinha sorte que Gaspard era tão bom em fingir quanto ela — não duvidava que para seu pai, a cena era de duas pessoas apaixonadas que mal podiam se conter ao se verem.

— Por favor, termine seu chá, Vossa Excelência! — o senhor Dupain insistiu, se aproximando do seu futuro genro.

— Já havia terminado, senhor — Gaspard se explicou. — E, antes que peça perdão por qualquer demora, adianto que apenas estava com sede.

— Sempre um homem cortês e gentil, não é mesmo?

O marquês apenas assentiu com a cabeça, tentando tirar um pouco da seriedade do rosto. Então, transferiu sua atenção para Mylène e a elogiou:

— Está deslumbrante neste tom de azul, senhorita.

— Obrigada, Vossa Excelência — Mylène lhe respondeu com uma pequena reverência, que Gaspard interrompeu com uma mão.

— Gaspard — Relembrou. — Nosso casamento se aproxima, então a senhorita pode me chamar de Gaspard.

Tinham combinado de atuar aquela cena num de seus últimos encontros, e Mylène havia se esquecido em meio a sua confusão de sentimentos. Era essencial que a felicidade de Hugo Dupain estivesse nas alturas para que o plano de ambos continuasse da forma que almejavam. Em resposta, Mylène deu um sorriso tímido, enquanto os olhos do seu pai brilhavam de felicidade; seu sonho de entrar oficialmente no círculo da nobreza parecia estar cada vez mais próximo.

— Vamos? — ele perguntou por fim, oferecendo o braço esquerdo, que Mylène aceitou prontamente.

Sonho.

Quando o sonho do pai se realizasse, ela perderia toda a sua chance de viver a vida que gostaria.

Porém, ao mesmo tempo, poderia libertar a sua mãe. E não havia nada no mundo que não faria para que isso ocorresse.

Continua...

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CRÉDITOS
Autora: Marina Oliveira
Edição e Preparação: Bárbara Morais e Val Alves
Revisão: Mareska Cruz
Diagramação: Val Alves
Ilustração: Fernanda Nia

As Incertezas da FortunaOnde histórias criam vida. Descubra agora