Capítulo 3

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental. 

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Andar pelas ruas lotadas, passar pelas barracas improvisadas cheias de atrações, sentir o aroma da comida romani no ar; tudo fez com que Mylène se emocionasse ao ponto de seus olhos se encherem de lágrimas. O festival da primavera ainda lhe causava a mesma sensação de quando fora pela primeira vez: alegria, empolgação, como se estivesse viva por dentro.

— Eu sabia que você amava o festival, mas não a ponto de derramar lágrimas — a voz de Gaspard interrompeu seu momento mágico.

Porém não a ponto de desanimá-la.

— Não é possível que você não sinta nem um pouco da energia que está pairando no ar — ela o provocou, com um meio sorriso.

— E que energia seria essa?

— Não sei se conseguiria colocar em palavras, mas é como... fogo. Isso, fogo. — Então, Mylène parou de andar e colocou as mãos no meio da barriga. — É como se uma chama queimasse bem aqui e irradiasse para cada canto do meu corpo. Sim, é assim que me sinto.

Gaspard a encarou, sem palavras e cobriu a boca com uma das mãos. Mylène, que já estava acostumada com o gesto, sabia que era a maneira dele de mostrar que achava algo esquisito ou até engraçado.

— Eu estou falando sério, Gaspard!

— Não estou dizendo que não está! — Gaspard se defendeu, uma risada escondida em sua voz. — Apenas não esperava vê-la falar com tanta empolgação de algo que não seja anatomia ou doenças que só existem em Kremlim.

— Olha como se dão bem! — disse uma voz atrás deles.

Esse tipo de observação já estava virando costume e Mylène se sentiu satisfeita. Os dois ignoraram o comentário e Garpard lhe ofereceu o braço para prosseguirem, e ela o enlaçou com o seu.

— Pelo menos já temos uma confirmação de que esse seu plano de vir aqui foi realmente uma boa ideia. Imagine o que os tabloides dirão amanhã? "Por amor, Gaspard Orléans acompanha Mylène Dupain no festival da primavera" — Mylène concluiu com uma entonação dramática, arrancando um leve sorriso do noivo.

— Espero sinceramente que seja algo do tipo ou até mais sensacionalista — declarou Gaspard com um tom amargo. — Desde que vi a primeira bandeira dos Romaines exposta logo que chegamos tive vontade de arrancá-la. É absurdo ver a capital de Chambeaux tomada por um povo estrangeiro.

De canto de olho, Mylène observou o semblante do noivo. As palavras dele eram as mesmas proferidas por qualquer nobre dos quatro cantos do país. Beaus eram extremamente patriotas e rígidos em seus costumes. "Graça, honra e família", este era seu lema. Uma grande hipocrisia, na singela opinião da Dupain, que vivia dizendo que as três palavras reais seriam "Ostentação, fofoca e família de fachada". Os Romaines só tinham o mínimo de liberdade porque apesar de tudo, sabiam que eram em número muito menor do que o resto da população, que tinha tanto apreço por eles quanto Mylène.

Porém, o semblante de Gaspard dizia mais do que os valores da nobreza. Ela sentia que havia algo a mais. Uma dor não curada, uma raiva ainda mais irracional. Era visível quando ele defendia que os Romaines deveriam pagar impostos ou sair de Chambeaux de vez, algo que só faria sentido se os camps, locais de assentamento romani, ficassem na cidade e eles usufruíssem dos recursos locais. Gaspard normalmente era mais sensato do que sugerir um absurdo desses, já que os camps ficavam em lugares ermos, e os Romaines plantavam e produziam o próprio alimento... não havia motivo nenhum para cobrar imposto de pessoas assim.

"E também de pessoas pobres da cidade que mal tinham renda para se sustentar", Mylène acreditava, mas nunca diria em voz alta.

— Algum dia vai me dizer o porquê de odiar tanto os Romaines? — ela perguntou, enquanto parava e admirava algumas joias casualmente. — Você fala com tanta amargura que me faz pensar que existe um motivo secreto.

— Ah, é? E o que você acha que é? — Gaspard a provocou, achando o comentário dela, no mínimo, curioso.

Mylène deu um sorriso e se dirigiu às flores que uma senhora vendia na tenda ao lado.

— Sei que como nobre Beau, você tem a tendência a simplesmente não gostar dos Romaines. Porém, você sabe que sou uma mulher observadora e minha intuição me diz que você tem um motivo mais pessoal para todo esse ódio... quem sabe uma lembrança ruim?

Ao terminar de falar, Mylène encarou Gaspard para ver sua reação. Seus olhos se arregalaram rapidamente, mas logo voltaram ao normal. Provavelmente havia o impressionado de novo. Ele cruzou as mãos atrás das costas e parou ao seu lado, observando a infinitude de flores da banca, um pouco pensativo.

As Incertezas da FortunaOnde histórias criam vida. Descubra agora