Capítulo 3 - Gabriel

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Abrindo o armário, ele foi obrigado a encarar-se no espelho. Os olhos profundos sobre bolsas escuras denunciavam o tempo que ficara lá. Ele respirou fundo. Agora o cansaço era inegável e em pouco tempo cairia sobre ele como uma rocha. Passou, então, a ignorar a imagem refletida e começar a se trocar. Estava sozinho no vestiário de luzes brancas estouradas. Aliás, todas as luzes do hospital eram brancas e estouradas, como requerem que pacientes descansassem daquele modo? Claramente quem comandava o hospital não entendia nada de saúde.

Quando já estava terminando de enfiar as coisas na bolsa carteira de couro que levava a tiracolo quando a porta se escancarou. Sofia adentrou o lugar trazendo na mão um copo de café. Os cabelos presos em uma colinha, um pouco bagunçados. Seu uniforme estava cheio, no espaço toracoabdominal, por o que parecia ser vômito seco. Quando seus olhares se encontraram, ela arregalou os dela.

— Nossa! Faz quanto tempo que você tá dando plantão?

   Gabriel baixou os olhos e sorriu.

— Dessa vez foram 48 horas.

Sofia vinha se aproximando. Franziu o cenho em uma expressão de estranhamento ao ouvir aquela resposta.

— Ué, desde quando a Amanda libera 48 pra novato?

— Foi um presente por completar 1 mês aqui.

Eles abafaram o riso por um instante. Sofia pousou a mão desocupada sobre o ombro do colega.

— Vai pra casa, vai. Tá escrito na sua cara que você precisa dormir. — Eles sorriam um para o outro. Sofia baixou a mão e passou por ele em direção aos chuveiros. — Enquanto isso eu vou tirar esse negócio de mim.

— Bem que você faz mesmo, porque isso aí tá fedendo. — Gabriel fez uma careta de nojo, claramente zoando com ela. — Bom resto de plantão pra você, Sofia.

— Bom descanso, Gabe! — Sofia atravessou a porta para o outro ambiente do vestiário e sumiu a esquerda.

Gabriel saiu do hospital, acenou para alguns colegas por quem passou no caminho, atravessou o estacionamento e chegou na avenida movimentadíssima. Todos os barulhos de uma cidade grande podiam ser ouvidos ali naquele momento: carros, motos, polícia, bombeiros, ambulâncias… A noite era sempre muito viva na região central da cidade. Dobrou a direita e em poucos passos chegou a parada capenga por onde seu ônibus igualmente capenga passava. Apesar do burburinho da cidade, ela estava vazia.

Esperou alguns minutos e logo avistou o transporte ao longe. Chegando mais perto, ergueu o dedo indicador para chama-lo. O motorista conseguiu parar bem a frente de Gabriel e as portas rangentes se abriram. Ele subiu os dois degraus da escadinha e cumprimentou o homem. Então, deu 3 passos e sacou um cartãozinho do bolso frontal da calça e encostou numa maquininha amarela que liberou sua passagem pela catraca. Andou mais um pouco e sentou-se num banco desocupado mais ou menos no meio do ônibus, ao lado de uma senhora de cabelos descoloridos.
O automóvel ia como podia, seguindo a faixa aos trancos e barrancos. Nas próximas paradas ele não demorou a lotar. As pessoas se apertavam tanto que parecia que iam transbordar pelas janelas abertas a qualquer momento, mas, como Gabriel morava no fim da linha, viu o momento em que ele foi gradualmente esvaziando também. Ele não morava tão longe assim de onde trabalhava, mas o ônibus dava voltas e mais voltas até chegar perto da sua casa. Como se não bastasse, ainda era verão.

Em dado momento, seu olhar bateu com o de uma das poucas pessoas que ainda restavam em pé; o de uma menina de cabelos pretos presos em um rabo-de-cavalo e com alguns fios soltos pelo rosto que provavelmente no início do dia eram uma franja decente. Ela parecia não ter 20 anos ainda. Era magrinha e usava uma regata listrada branca e preta, calça jeans skinny e All Star, além de uma mochilinha nas costas. Ele deixou o pensamento viajar no tênis da menina. Lembrou do seu ensino médio, quando ele tinha uma coleção daqueles. Lembrou também que adorava usar eles até que rasgassem. E lembrou que nunca, em hipótese alguma, lavava seu All Star, porque lava-lo seria apagar sua história na sua mente adolescente. Quando voltou a realidade, percebeu que a menina o olhava de volta e deu um leve sorriso um pouco envergonhado porque a estava encarando sem querer, mas quando ia desviar o olhar, ela desviou primeiro. Só que desviou para o lado errado: para cima.

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⏰ Última atualização: Feb 28, 2021 ⏰

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