"é ferida que dói, e não se sente" (Camões)

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A Terra rodopiou e nada da "pessoa que mais me ama". Tem tanta gente que não gosta de mim, a fila é longa (não sou a mais amada da cidade). Deveria ter sido mais agradável, talvez isso não acontecesse. Infelizmente, sou naturalmente insuportável. O que posso fazer? Já tentei de tudo, mas eles são bem fiéis ao ódio; se é para odiar alguém, odeiam tudo na pessoa: da cara até a alma e da alma até a ca-ra... c-a-r-a... Cordilheira dos Andes!

Durante o intervalo, sentada em uma das mesas da cantina com Paola, espiava, por de trás do ombro dela, "Luluzinha": rindo no banco rodeado por bromélias. Acenava a cabeça e falava: "aham", para tudo que Paola dissesse. "Luluzinha" se levantou e andou até o banheiro.

– Vou no banheiro – disse sem tirar os olhos da "pessoa que mais me ama".

– Vou junto.

– Não vá – respondi rapidamente –, é sério. Estou com diarreia e o cheiro não é agradável.

Paola não contestou.

Lá estava apenas "Luluzinha" na última cabine e eu na frente da sua porta metálica. Não acreditei que estava fazendo aquilo. Mas, àquela carta mexeu comigo. Palavras tão doces escritas de um jeito tão torto.

Quando ela abriu a porta, seus olhos castanhos saltaram em um susto.

– "Você é incrível" – citei a "carta de amor".

– Eu sei. – Esbarrou em mim e começou a lavar as mãos na pia de granito.

Aproximei-me dela e continuei:

– "Continue sendo incrível e não deixem que apaguem sua luz. Com eterna devoção, a pessoa que mais a ama. "

"Luluzinha" parou de lavar as mãos e encarou-me através do espelho.

– Se você quiser criar um fã-clube para mim, crie – disse ríspida. – Mas, não venha me atormentar. Já basta eu ter que olhar para você todos os dias na frente da minha carteira, Beatriz!!!

– Admita!

– Admitir o quê? – Empurrou-me para pegar duas folhas de papel toalha.

– Que você escreveu uma "carta de amor" para eu achar que alguém gosta de mim.

– Por que eu perderia meu tempo com você? – riu e foi até a porta. – Vai ver, realmente, uma pessoa tapada escreveu essa tal carta para você. Tem gente com muito mal gosto neste mundo.

Depois do intervalo, fiquei pensando se "Luluzinha" tinha razão enquanto prestava (consideravelmente) atenção nas aulas. Bem, ela seria a única que escreveria uma "carta de amor" falsa, os outros não têm o ódio necessário. E se "Luluzinha" tivesse escrito, ela é cara de pau o suficiente para confessar na minha frente com a maior tranquilidade. A "pessoa que mais me ama" existe.

Na aula de literatura, sondava os arredores e meus candidatos, à busca da "pessoa que mais me ama", desejando que ela desse um pequeno deslize. Meu admirador secreto em potencial se revelou nos últimos dez minutos de aula: Augusto. O professor chamou-o para recitar os dois primeiros versos de um poema de Camões. Ele não pediu para Augusto para a frente da turma, porém foi sem hesitar. Começou a recitar, levantando seus olhos de jabuticaba por cima da apostila, para a fileira do meio, para mim:

– "Amor é fogo que arde sem se ver. "

Quando éramos crianças, estávamos no aniversário de Paola e lembro que ela me desafiou a subir em um chorão velho. Todas as crianças se amontoaram em volta dele para ver minhas tentativas de subi-lo. A cada minuto que passava, uma delas era vencida pela impaciência e saía. Depois de meia hora, quando finalmente consegui subir, olhei para o chão e o único que tinha ficado era Augusto. Perguntei porque ele não tinha ido embora e ele respondeu: "Sabia que você ia conseguir. " Na descida, meu pé escorregou em uma casca solta e caí. Quebrei a perna, mas nenhum osso saiu para fora (como imaginava na minha cabeça de criança quando algo assim acontecesse), ela apenas ficou avermelhada como uma dor invisível. Aquilo ardia como o fogo. Entre gritos agonizantes, Augusto veio ligeiro me socorrer.

– "É ferida que dói, e não se sente. "

Ele não sabia o que fazer com a ferida então, apenas apertou minha mão e não saiu do meu lado nem por um segundo, até quando fui para o pronto-socorro. Mesmo com minha perna pulsando de dor, me concentrei no seu sorriso calmo e compreensivo e isso fez com que eu não sentisse quase nada.

Depois da escola, fui para a terapia com a Lívia.

– Como você está indo? – Lívia começou.

– Relativamente bem... – Inclinei a cabeça. – Tentando ver tudo pelo lado positivo, então acabo não vendo nada.

Olhei para suas mãozinhas anotando tudo no seu caderno dedo-duro.

– Espera! – Ela não esperou. – Vai anotar isso? Era brincadeira.

Parou de escrever e observou-me por cima de seus óculos de gatinho escarlate.

– Vou. – E voltou a escrever. – Pode continuar, querida. É para seu bem. – Fiquei em silêncio e Lívia me encarou. – Quer me contar alguma coisa que aconteceu desde a última consulta?

Hesitei, mas depois cedi:

– Quero.

– Muito bem, querida. – Sorriu e acenou a cabeça. Contei tudo sobre "a pessoa que mais me ama" e Augusto. No final, ela me olhou solenemente. – Mas... você gosta dele?

– Não sei. – Concentrei meu olhar no chão azulejado. – Só sei que – levantei meus olhos cinzas –, não importa se é ele ou qualquer outra pessoa, eu posso lhe garantir que amo quem escreveu aquela carta.

Então, veio seu sermão e blá, blá, blá.

À Busca da Pessoa Que Mais Me AmaOnde histórias criam vida. Descubra agora