Capítulo um

3.4K 442 109
                                    

Fernanda

Quatro anos depois.

— Você não ficou com medo, tia Nanda?

— Medo de quê, Vivi?

— Sei lá... De ter uma barata lá dentro.

Era difícil não rir o tempo todo quando estava na presença da Vitória. Desde a noite em que a encontrei que eu simplesmente não conseguia passar mais do que três ou quatro dias sem vê-la. Eu me tornei uma espécie de madrinha e tinha autorização para levá-la sempre para passar Natais e aniversários comigo e conseguia também fazer isso em alguns feriados prolongados. Isso, é claro, quando família "de verdade" permitia.

Através do acesso às câmeras de segurança da rua, tinha sido possível descobrir quem a havia abandonado com poucos dias de vida dentro de uma caçamba de lixo. Não fora a mãe, como a imprensa e o povo e geral já tinha levantado logo de cara, mas o pai. A mãe da menina falecera poucos dias depois de dar à luz, devido a complicações no parto. O pai, que já não queria mesmo assumir a filha, tentou dar um jeito "rápido e fácil" na situação. Ele foi preso, passou poucos meses na cadeia, conseguiu sair e simplesmente desapareceu no mundo.

Só que Vitória tinha uma avó materna, que não tinha condições de ficar com ela, mas não permitia que a menina fosse colocada para adoção. Todas essas situações familiares e burocráticas complicadas faziam com que Vivi, agora com quatro anos de idade, tivesse crescido dentro de um abrigo, recebendo uma ou outra visita da avó – que morava em outra cidade – e me perguntando sempre, quando ficava comigo no meu apartamento, se não poderia ficar ali para sempre.

E o que eu mais queria na vida era que isso fosse possível.

Ela gostava muito da história sobre como eu a havia encontrado. Mesmo que as outras pessoas ao seu redor falassem daquilo como algo trágico, dando muita ênfase na questão do abandono, da desumanidade de ela ter sido deixada em meio ao lixo, eu fazia questão de dar um destaque diferente à situação, contando sobre como o destino fez com que eu a encontrasse e sobre como ela dera outro sentido à minha vida.

Passei a mão pelos cabelos negros e cacheados e sussurrei em resposta, fazendo um tom divertido na voz.

— Você sabe que eu não tenho medo de barata.

Então, foi ela quem riu e eu simplesmente amava o som daquela gargalhada gostosa dela.

Chegou a hora de ir embora e as despedidas eram sempre difíceis. Vivi sempre me abraçava com força e perguntava se faltava muito para o sábado, quando eu a levaria para dormir na minha casa. Eu tinha autorização para ficar com ela em finais de semana alternados. A cada duas semanas nós passávamos o sábado e o domingo juntas.

Voltei para o meu apartamento com o meu coração apertado e fui diretamente enterrar a cara no trabalho. Tinha uma matéria importante para terminar, que precisaria entregar na redação na manhã seguinte para já entrar na próxima edição impressa da revista onde eu trabalhava. Na verdade, importante era uma forma meio forte de me referir ao trabalho em questão. Eu não conseguia ver muita relevância em um artigo sobre a tendência da nova estação para peças de roupas em tons pastéis.

Sim, a menina que sonhava em rodar o mundo fazendo reportagens jornalísticas de impacto e em ser uma escritora de sucesso acabara conseguindo um emprego no editorial de moda de uma revista feminina. Ao menos eu tinha um salário que me permitia pagar o aluguel de um apartamento e não precisei voltar para a casa dos meus pais. Meu orgulho próprio continuava em dia, e as contas também. Isso já contava muito.

Eu já teria terminado a matéria – era algo que eu costumava fazer bem rápido e até com relativa facilidade, mesmo levando em consideração ser a respeito de um tema que eu não dominava bem – só que eu acabei me distraindo com outro arquivo aberto do Word, onde eu iniciava um novo livro. Já havia perdido as contas de quantos eu já havia escrito (afinal, escrevia desde os treze anos de idade), mas estavam todos bem guardados no HD do meu computador e em alguns backups. Eu era muito insegura a respeito de mostrar minhas histórias para outras pessoas, mesmo assim, as situações e personagens que povoavam a minha mente gritavam tão alto que eu sentia uma urgência quase física de colocá-los para fora, de dar vida a eles. Escrever, para mim, era mais do que um hobby... era uma necessidade.

Mais que Amigos [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora