"Ótimo! Chuva! Muito obrigado por facilitar minha vida Universo!" resmunguei quando saí do metrô.
Eu precisaria andar apenas 3 quarteirões do metrô até o Candy Roll, mas com aquela chuva horrorosa esse curto trajeto seria o suficiente para me deixar ensopado dos pés a cabeça. Respirei fundo enquanto esperava debaixo do toldo da padaria na saída do metrô e decidi encarar aquela chuva horrorosa. Estava adiantado, até que Kaya me encontrasse na sorveteria (se ela fosse!), já teria dado tempo para que minha roupa secasse um pouco a ponto de não parecer um pão molhado. Mas o que eu podia fazer, estava sol quando peguei o metrô, não podia imaginar que o tempo mudaria completamente em meia hora. Poderia sim, mas achei que seria ridículo aparecer no primeiro encontro com um guarda-chuva num dia de sol como aquele. Resolvi arriscar e como o Universo sempre torce pelo caos, eu estava ali sofrendo as consequências do sadismo de algum ser sobrenatural onipresente que gostava de transformar minha vida numa verdadeira sitcom de baixo orçamento.
Como um gato cacei minhas vitimas ao longo do percurso me aproveitando de seus guarda-chuvas enquanto não percebiam que eu estava me aproveitando do espaço minúsculo que sobrava deles. Fiz isso durante os primeiros quarteirões e estava com esperança de chegar praticamente seco ao Candy Roll quando, distraído, não vi um carro passar voando por uma poça d'agua e ver todo o meu esforço ir pro ralo pois foi como se alguém tivesse jogado um balde de agua diretamente na minha cara. Faltava um quarteirão apenas. Olhei pro céu, respirei fundo, e reconheci que eu não ia ganhar do Universo.
"Ok! 1x0 pra você ser onipresente que torce pela minha derrota! Na próxima me mande um tsunami!"
Comecei a rir do que disse.
Eu estava nervoso? É só um encontro, como vários outros. Porque eu estava nervoso?
Percorri o último quarteirão com mais calma deixando a chuva lavar o pouco da dignidade que me havia sobrado.
Quando cheguei á porta do Candy Roll, aproveitei o toldo que ficava na entrada para torcer um pouco a camiseta e a barra da calça pra não entrar pingando dentro da sorveteria. Quando levantei o rosto para abrir a porta vi o reflexo de Kaya atrás de mim.
Ela estava linda, os cabelos cacheados desciam como uma cachoeira pelos seus ombros. Estava com um vestido florido até os joelhos, uma maquiagem leve delineava seus olhos, seus lábios vermelhos sorriam pra mim pelo reflexo, e ela ESTAVA COM UM GUARDA-CHUVA. Quando meus olhos encontraram os dela vi que estava rindo, não pra mim, mas de mim.
Virei-me incrédulo, há quanto tempo ela estava atrás de mim?
Veio na minha direção e com um movimento delicado abriu a porta da sorveteria pra mim.
"Estou impressionada com seu gingado para conseguir um espaço debaixo do guarda-chuva alheio. Pena que não funcionou!" riu e passou direto por mim.
Fiquei olhando pra ela sem acreditar. Aquela garota viu o meu empenho em estar apresentável para aquele encontro e simplesmente me deixou sofrer, era isso?
Fiquei olhando pra ela através do vidro da porta até ela se sentar.
Nossos olhos se encontraram e com o indicador ela me chamou convidando-me a sentar do lado dela, o sorriso em seu rosto mostrava que ela havia se divertido com o meu sofrimento. Cruzei os braços e ela soltou uma gargalhada que pude ouvir do lado de fora.
"Eu vou casar com essa mulher!" pensei.
-
O Candy Roll tinha toda uma vibe anos 60, um jukebox no canto todo colorido, as paredes com cores vibrantes e futuristas, os bancos arredondados e baias individuais deixavam o ambiente acolhedor para os primeiros encontros dos casais que estavam se formando na cidade. O cardápio com os mais diversos sorvetes e sanduiches não era o tipo de sofisticação que se desejava para encontros importantes, mas estava de bom tamanho para um primeiro encontro. As garçonetes traziam os pedidos de patins ao som dos Beatles e éramos transportados para tempos áureos enquanto pedíamos nossos lanches.
Eu lembrava de ir lá quando era pequeno. Meu pai sempre trazia minha mãe pra comer ali quando queria comemorar algo, fosse uma promoção do trabalho, fosse o amor que sentia por ela. Afastei dos meus pensamentos a carga emocional daquele ambiente enquanto Kaya fazia seu pedido para a garçonete.
Peguei o guardanapo da mesa e comecei a dobrá-lo pensando em como quebrar o gelo naquele primeiro encontro.
Kaya se antecipou e começou a falar.
"Então, Thommas, certo?!" perguntou.
Nesse momento me dei conta de que não havíamos nos apresentado decentemente. Apenas tínhamos dito nossos nomes no elevador.
Aquele momento era a nossa primeira conversa decente.
"Exato! Mas pode me chamar de Thommie! E você é Kaya, certo?!" respondi.
"Sim! E pode me chamar de Kaya mesmo porque ninguém da minha família achou um apelido digno para este nome diferente!" ela riu.
"Eu acho um nome bonito! Tem algum significado estranho ou é só uma junção de letras aleatórias?" perguntei.
"Kaya são vilas fortificadas de uma região do Quênia na África. São veneradas como locais sagrados. Meu pai veio dessa região pros Estados Unidos em 1940. Me deu esse nome como uma lembrança do lugar que nasceu!"
"Uau! Meu nome foi homenagem ao padeiro da rua que nasci!" respondi.
"Sério?" ela me olhou hesitante.
"Claro que não!" ri um pouco mais alto do que deveria. Eu estava nervoso.
Ela riu também e ficamos nos encarando por poucos segundos. O olhar dela me hipnotizava.
"Então. Thommie, O padeiro, o que você gosta de fazer quando não está olhando para a saia das mulheres no banco?!" disse ela se ajeitando mais confortavelmente na cadeira.
"Primeiramente, eu não faço isso – não com frequência, mas ela não precisava saber disso – foi apenas um lapso. Você me deixou impressionado naquele dia! Mas respondendo ao objetivo da sua pergunta – continuei - eu costumo correr no parque, remar aos finais de semana de sol, beber cerveja no terraço da casa do Milo e quando tomo vergonha na cara vou visitar minha égua em Flemington." Respondi.
"Você tem uma égua?" ela perguntou curiosa.
"Sim! Meus avós tem uma propriedade na cidade e ganhei uma égua quando tinha uns 8 anos de idade. Ela é linda! Mas faz um tempo que não a visito!"
"Eu amo animais! Infelizmente não tenho tempo para cuidar de um, mas adoraria ter uma casa cheia deles. Quem sabe no futuro?" ela disse.
"Eu também gosto muito, mas estou na mesma situação que você! Sem tempo e sem espaço! Nagy é uma égua linda. Um dia se quiser posso te levar pra conhece-la..." – mal tínhamos começado aquele encontro e eu já estava programando um segundo.
"Que legal isso significa que vamos sair de novo?!" ela riu.
Ainda não tinha me acostumado a beleza de Kaya, e enquanto eu tentava achar o rumo, nossa conversa seguiu despretensiosa durante a espera pelos nossos sanduíches.
Kaya me contava sobre a sua vinda para Nova Iorque ao passo que eu tentava pescar o máximo possível de informações tentando não parecer um tonto que a olhava com cara de tonto, e parecia definitivamente um tonto. Ela era linda e despertava em mim desejos como casar, ter filhos, bichos e ir morar longe da cidade numa fazenda cheia de bichos. Meu inconsciente ria do meu nervosismo.
A medida que Kaya falava sobre sua vida, ela gostava de ir ao cinema com as poucas amigas que tinha feito na cidade, Tessa era uma delas, eu notava que ela tinha um sério problema com os cabelos que volta e meia enroscavam os fios nos seus lábios. Era engraçado vê-la pausar de tantos em tantos minutos tentando arranjar uma forma de domá-los. Num certo momento, quando os cabelos dela insistiam em grudar nos seus lábios estendi a mão quase que inconscientemente, e afastei os cabelos para trás de suas orelhas.
"Pronto! Melhor assim!" disse e não percebi que estava próximo demais do seu rosto.
Kaya pausou seu monólogo por um breve segundo e vi suas bochechas corarem, até perceber que estava quase colado no seu rosto.
Me ajeitei na cadeira, dei uma mordida no meu sanduíche e deixei que prosseguisse.
Enquanto conversávamos via a chuva se esvaindo pela janela e um fino feixe de luz irradiou sobre a rua, o sol estava aparecendo naquele dia de inverno.
Kaya percebeu quando me desliguei da conversa vendo o sol lá fora.
"Eu deveria ter marcado o lanche para as 11! " disse apontando pra minha roupa encharcada.
Eu havia me esquecido que estava completamente ensopado para o nosso encontro. Ela me fazia sentir tão bem que eu simplesmente tinha esquecido de tudo ao nosso redor.
"Você gosta de caminhar?" perguntei.
"Não que eu goste, mas se você estiver a fim, eu vou!" respondeu sorrindo.
Levantei da mesa e indiquei a garçonete que o dinheiro do lanche estava debaixo do saleiro. Ela sorriu e fez um sinal de afirmativo com a cabeça.
Pegamos nossos sorvetes e saímos pela porta.
Estava mais quente do que quando chegamos e Kaya decidiu que seria uma boa ideia tirar o casaco que cobria a parte de cima do seu vestido. Um pouco atrapalhada entre a bolsa e o guarda-chuva, fui ajuda-la quando o casaco enroscou na ponta do guarda-chuva. Puxei o casaco dela pelos seus braços e quando enfim vi seu rosto estávamos próximos demais. Eu sentia sua respiração quente no meu rosto.
Nossos olhos se encontraram e vi um sorriso se formar em seus lábios.
"Obrigada! Eu sou um pouco estabanada as vezes!" ela disse e eu conseguia ver em seu rosto um pouco de vergonha, e aquele olhar me deixou um pouco mais confiante. Algo estava acontecendo ali!
Dobrei o casaco sobre meus braços e estendi um deles para que ela segurasse.
Kaya dobrou os joelhos em agradecimento fingindo uma reverência e aceitou meu braço como apoio.
Estávamos, pela primeira vez naquele dia, tão próximos que eu podia sentir a maciez de sua pele. Ela era radiante debaixo do sol. O sorriso dela, a forma como ela falava da cidade, e dos animais, e dos parques e do trabalho eram encantadoras. Demoramos alguns instantes para sincronizar nossos passos, ela riu quando parei e mostrei qual perna tinha que ir primeiro para andarmos em compasso.
Eu me sentia bem do lado dela de uma forma que eu não ficava diante de outras mulheres. Ela deixava tudo fluir. Conversávamos como se nos conhecêssemos há anos, mas estávamos ali juntos há menos de 2 horas.
Caminhávamos pelo parque quando ouvi um assobio e olhei para trás a tempo de ver uma bicicleta em nossa direção mais rápido do que o normal. Tirei minhas mãos do bolso e rapidamente a puxei pra perto, a fim de desviar da bicicleta. O homem passou tão perto que tive que comprimi-la no meu peito para que ele não a atingisse.
"Veja por onde anda!" gritei para o homem já longe a esta altura.
Olhei para Kaya e perguntei se estava bem, ela assentiu.
Levou um segundo para perceber que eu estava a abraçando contra meu peito. Nossos corpos unidos e eu pude sentir o perfume que ela usava. O mesmo aroma que senti quando nos vimos no elevador pela segunda vez. Dessa vez não quis me afastar, e ela não pareceu se incomodar.
"Eu amo esse seu perfume!" disse por fim.
"É o mesmo que eu estava usando..." - "No elevador! Eu sei!" interrompi ela.
Descobri naquele instante que era mais fácil formular frases quando estava mais próximo de Kaya. Minha cabeça borbulhava de informações, eu queria ter a conversa do Candy Roll novamente, mas próximo a ela daquele jeito.
Com a outra mão afastei seus cabelos do rosto e enquanto eu desenhava sua bochecha com as mãos ela fechou os olhos e sorriu.
Fiquei tentado a beijá-la. Eu queria beijá-la. Foi o meu desejo durante todo o dia, mas eu queria aproveitar aquele momento mais que tudo.
"Você se incomoda se andarmos assim?" perguntei tirando-a de seus devaneios.
"Assim abraçados?" ela respondeu.
"Isso!"
"Não! Desde que me salve outras vezes de bicicletas descontroladas!" ela riu, e enquanto meus braços envolviam seus ombros, senti que ela abraçava minha cintura. O calor que sentia subir pela espinha era uma nova sensação. Eu nunca havia me sentido tão bem com um a garota como eu me sentia com Kaya. Do lado dela eu esqueci todos os problemas que eu tinha. Do lado dela eu me sentia livre.
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A man behind the horse
RomansaO mundo de Thommy se mistura entre o passado e o presente. Uma vida de amor e confidências com Kaya transformado num mundo de sombras e areia. O que teria feito pra chegar nesse ponto? E o quê Nagy, sua égua de estimação, teria a ver com a conexão e...