Eu não sei por quanto tempo eu dormi sobre Nagy, nem quanto tempo havia se passado desde que saímos da tempestade no deserto, a única coisa que eu sentia era uma dor excruciante que percorria meu corpo dos pés ao último músculo possível na cabeça. Tudo estava dolorido e foi uma aflição tentar me levantar sobre a égua. O esforço hercúleo mostrava a quantidade despropositada de tendões e músculos e carne que tinha no corpo. Praguejei cada mísera célula dentro do meu corpo. Nagy estava cambaleando, faminta, e senti que pudesse desabar a qualquer momento. Por quanto tempo eu dormi?
Infelizmente Nagy não era o tipo de companhia que poderia verbalizar as respostas as quais eu precisava, mas pelo seu cansaço aparente estava rumando ao norte por alguns dias.
O que tinha acontecido no deserto? O que tinha acontecido comigo?
Peguei o cantil na lateral da sela e joguei um pouco no rosto a fim de eliminar a poeira que encobria meus olhos, e tudo o que consegui foi enlamear o rosto numa pasta de areia e suor. Enxuguei o rosto com as mangas do casaco e senti a areia arranhar meu rosto. A barba estava num estado degradante. Por fazer há dias. E assim eu sentia que a areia encontrara um meio de preenche-la e causar mais irritação. Sorvi um pouco da água do cantil e puxei as rédeas de Nagy para que ela parasse e eu pudesse descer e alimentá-la. Ou pelo menos tentar já que eu não fazia ideia de como ia conseguir descer dela.
Nagy respondeu imediatamente ao meu comando e se sentou igual a um camelo na areia quente do deserto. Ela não podia entender meu agradecimento em palavras, mas o relincho que soltou certamente mostrava que ela entendia meu sorriso. Desci com dificuldade de Nagy, e com uma tigela derramei o restante de água do cantil para que ela pudesse beber.
"Não é o suficiente, mas tenho certeza que fará diferença pra você minha amiga!"
Não levou nem um minuto para que Nagy bebesse toda a água na tigela. Separei um pouco do feno que estava preso em sua traseira e coloquei do lado da tigela. Não lembrava de ter pego o feno na relva, mas podia ser obra daquele maluco que decidiu morrer na tempestade.
O trajeto até onde estávamos foi marcado por sonhos estranhos e aleatórios envoltos em flashes que eu não soube decifrar. Enquanto acariciava o pelo de Nagy eu fechei os olhos tentando lembrar com o que tinha sonhado e nada fazia sentido pra mim naquele momento. Flashes, carros, gritos. Meus sonhos costumavam ser um caos controlado em meio a calmaria dos meus pensamentos. Não importava o terror que eles fossem, eu sempre costumava agir moderadamente. Sempre achei um desperdício já que nos sonhos eu poderia voar pra outros planetas, e eu sempre me mantinha com os pés no chão.
Joguei pro lado uma das bolsas que carregava sobre Nagy e apoiei o pescoço a fim de olhar para o céu. O sol estava em algum lugar escondido e eu não sabia precisar se estava amanhecendo ou anoitecendo. A cor alaranjada do céu era daquelas mais belas montagens que a física podia prover. Sem nuvens sob nós quase era possível enxergar o universo. Pousei os pés sobre Nagy e fiquei analisando o nada, completamente absorto em pensamentos vazios.
Um pássaro no céu dançava a sua música silenciosa junto a outros pássaros. Movidos como num corpo único eles percorreram boa parte do céu em direção ao sul quando sumiram por trás das rochas. Ao segui-los avistei a escuridão do céu que me deixou aterrorizado no dia - ou dias- anteriores. Levantei a cabeça e sentei na areia com os pés entrelaçados e, curioso tentei descobrir a quanto tempo estava daquela tempestade. Nós havíamos andado muito pouco, ou teria sido a tempestade que estava nos acompanhando com uma velocidade maior do que ao normal?
Por trás de uma montanha vi a claridade do sol despontar e descobri então que o dia estava começando. Os raios luminosos preencheram a vista até ofuscarem meus olhos e os de Nagy. Vi ela se abaixar procurando uma sombra que pudesse ser mais conveniente comer seu feno sem o sofrimento da claridade da manhã. Levantei de onde eu estava e sentei em sua frente de modo a criar uma barreira á claridade, atitude que foi agradecida com um relincho e um belo ranger de dentes.
"De nada! Mas não se acostume!" disse.
De costas para o sol olhei para a tempestade fiquei tentando relembrar a última conversa que tive com o velho. Ele tinha dito "Não se demore! Todo lugar te trará uma lembrança!" Mas do que ele estava falando? Que lembranças são essas?
Olhei firmemente para a tempestade á procura de respostas na esperança que as nuvens desenhassem as respostas assim como quando somos crianças e vemos animais formados por elas. Eu precisava ir ao desfiladeiro, mas eu não sabia nem onde eu estava. Os raios cortantes do outro lado do deserto não pareciam tão desafiadores quanto tinham sido desde a última vez. A distância amenizava o problema.
Passei a mão através dos pelos de Nagy e voltei a guardar a tigela e o cantil na sela.
Nagy ainda era um pequeno potro chegando na fazenda de meu avô. Todos os anos íamos toda a família comemorar a colheita de milho com meus avós e tios e eu sempre namorava os pôneis dos meus primos mais velhos. Eu sempre quis ter meu próprio cavalo, mas mamãe tentava me dissuadir da ideia sempre que possível por achar perigoso. E eu sempre ficava na expectativa que meu pai a convencesse a aceitar.
Naquele dia eu estava brincando próximo do estábulo esperando meus primos voltarem do passeio com os seus cavalos na floresta dentro das cercanias da fazenda. Lembro de acordar cedo para vê-los arrumar as selas, pentear as crinas dos seus cavalos. Todd era meu primo mais velho e sempre me levava para pentear sua égua escondido. Mamãe tinha pavor que eu pudesse ser nocauteado por um cavalo durante a limpeza. Mas, mesmo tão jovem, os cavalos não eram assustadores pra mim, e eu nutria tamanho carinho pelos cavalos dos meus primos quanto o que surgiu entre mim e Nagy. Todd havia me ensinado tudo o que era possível sobre como cuidar dos cavalos. A hora para alimentá-los, como deixar o pelo reluzente, como trocar as ferraduras, como amansá-los.
Eu havia acordado antes dos meus pais e seguido Todd pelo corredor da imensa casa quando senti os braços de alguém me puxando pro lado. Era vovó Nagy, a quem eu carinhosamente passei a chamar minha égua depois.
"Thommie, sua mãe sabe que está seguindo Todd?" ela disse beijando meu rosto e me abraçando com força.
"Saber não sabe, mas eu não vou subir na égua dele, ele só está me ensinado a como cuidar de um cavalo pra quando eu tiver o meu!" respondi.
"E quem disse que você terá um cavalo seu? Você não é muito pequeno pra isso?"
"Vó, você também é pequena e tem um cavalo!" disse.
Lembro da gargalhada dela como se fosse hoje. Vovó era uma mulher bonita. Seus cabelos marrons com uma centena de fios brancos e os olhos escuros, sua pele já indicando que os anos haviam sido gentis e cruéis ao mesmo tempo com ela, não deixavam de transparecer a beleza que a rondava. Sempre preparando as comidas mais incríveis da minha infância.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A man behind the horse
RomanceO mundo de Thommy se mistura entre o passado e o presente. Uma vida de amor e confidências com Kaya transformado num mundo de sombras e areia. O que teria feito pra chegar nesse ponto? E o quê Nagy, sua égua de estimação, teria a ver com a conexão e...