A confusão de vozes indistintas se erguia aveludada. Não um tropel alucinado, mas em variados recortes de sentenças sobrepostas umas às outras, sem contudo revelar qualquer entendimento. E vinham de um manto submerso, um marco divisório de mundos tão distantes.
Tons diversos rolavam, ora apressados, ora calmos, cândidos, ora enérgicos e vibrantes, ou murmúrios melancólicos. Todos vinham como que abafados contra um muro invisível, um burburinho incompreensível como se vindo de um sonho ou de um delírio, rompendo o tempo, o espaço ou a lógica.
A visão manchada de brumas entrecortava—se em imagens pouco menos embaçadas. Eram corredores de gelo, que erguiam suas estalagmites de cristais sonolentos, altas torres inquebráveis. Os corredores abriam-se em amplos salões azulados por cujas paredes corria um líquido translúcido, formas que a água esculpia em objetos aparentemente sólidos.
As escadarias conduziram a uma sacada, com parapeitos de matizes claros, entre róseos corais e pedras de jade. E a visão que viria além, que irromperia num provável sonho branco, pouco distinto como quase tudo ali, destoava da ausência de presença que marcava tudo até então.
A visão além da sacada revelou um feroz campo de batalha. Estandartes vermelhos como sangue tremulavam vindos do Leste, os maiores traziam traços rústicos de um sol negro. Batiam-se violentamente contra as bandeiras brancas que carregavam a sagrada ave dourada. Estes, em muito menor número, eram facilmente engolfados pela sedenta massa vermelha que avançava.
Nuvens negras de flechas cobriam o céu de repente, para cair atrás de formações inteiras, que deixavam de cobrir outras para manterem suas próprias vidas a salvo. O terror inundava seus rostos, em olhos vidrados, as bocas abertas num eterno grito mudo. E os baluartes de guerra rompiam espaço entre corpos, como uma embarcação ganha o mar.
Uma carnificina sem igual tinha seu lugar. Jovens eram ceifados ao tentar se evadir dos horrores a que estavam submetidos. Espadas e lanças os caçavam, como um esporte há muito cultivado no ódio e na vingança. Martelos e foices mutilavam, para abandonar corpos agonizantes em meio ao vermelho do campo.
Em meio ao tumulto, um jovem louro chamou sua atenção. Ergueu-se de uma pilha de corpos, as luzes do dia rebrilhavam em sua armadura. Os movimentos agitados de seus braços musculosos ditavam ordens aos soldados abrigados às bandeiras brancas. Conduziu alguns pelas mãos a montar uma defesa, ergueu-lhes suas armas caídas.
Aos arqueiros, ordenou que disparassem as fileiras de ambos os lados. Escudos retangulares protegiam seus disparos. Então o louro capitão correu a mais um grupo de seus compatriotas, cercados entre seus inimigos e grandes pedras. Contra as estocadas de longas lanças, empunhou sua firme espada. Levou alguns de seus adversários ao chão, com uma técnica apurada, de golpes simples e rápidos.
E ao que se virou para bradar mais ordens a seus comandados, uma lança vermelha o trespassou por trás. Ainda preso por ela, gritou mais comandos, girava os braços torneados no ar, espada em punho.
Até que as forças lhe faltaram, e ele caiu afinal.
Em pouco tempo as bandeiras brancas deixaram de tremular, seu exército foi varrido como poeira soprada ao vento.
Voltou a face ao lado, deu às costas ao campo sangrento. Atirou-se escadaria abaixo, o estalar de gelo reverberava sombrio atrás de si. O frio enregelava sua pele, com dedos de vidro que a tocavam sem permissão. Quanto mais corria, mais a água por trás das paredes translúcidas se agitava, moldava faces deformadas que a acompanhavam.
Alcançou uma antecâmara azulada, refugiou-se na escura luz, refratada pelas pedras de gelo, que inundava o ambiente. Ao centro erguia-se uma pequenina piscina, em cujas paredes cravejadas de gemas exibiam-se todos os tons turquesa.
Avançou. As águas, embora plácidas, mantinham um leve balouçar. Eram movimentos mínimos ao espelho d'água, mas perceptíveis a olhos destinados a enxergar, a olhos que se dispunham a ver além do que se estava disposto a mostrar, no tempo e no espaço.
A superfície tremelicou, minúsculos raios se expandiram a partir de um centro, sempre um gerando o seguinte. Tocaram de leve à borda redonda, em comunhão com aquela forma perfeita, sem diferenças entre si.
Um movimento sutil houve no centro, gotas se erguiam e desmoronavam. Seu recair agitava lentamente a placidez da calma piscina azulada. E foi esse movimento que provocou ondas na superfície antes plana. Ondas que formavam imagens distorcidas, indistinguíveis, mas perturbadoras.
Debruçou-se sobre a pequenina piscina, inclinou-se até o tumultuado espelho d'água. A busca por ver era incessante e o que a movera até ali: respostas concretas a perguntas subjetivas e dúbias.
Súbito uma face surgiu trêmula à superfície. Brumas sonolentas revolveram-se nos contornos cada vez mais nítidos, escorriam para as bordas da imagem. E o que havia de indistinto tomou uma forma: era a face de um guaxinim.
Ele sorria num rosto mascarado.
Este foi o primeiro capítulo. Espero que tenha gostado. Se você curtiu, deixe seu like e seu comentário. É importante para autores independentes saber o que o leitor achou do seu trabalho. Você dá aquela força e ainda ajuda a fomentar a literatura nacional.
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O Castelo das Águas
FantasyAriadne é uma maga do elemento água que busca servir sua ordem o melhor que pode. Entre erros e acertos, vive as voltas com a ambição desmedida de Agnes, maga da ordem rival. No entanto uma guerra entre mundos distintos está prestes a eclodir e acab...