Temos finalmente Carlos formado em medicina, com muita distinção. Em educação e carácter e também força de vontade, tudo parece contribuir para termos um homem útil ao país. Será que algo vai falhar?
Vamos então apreciar como é que Carlos se irá desembaraçar no meio social lisboeta. Será que o irão levar a sério? Parece-nos previsível que isso aconteça, tendo em conta os seus anos de estudo e todo o investimento na sua formação. A partir deste capítulo, vamos observar como o ambiente do século XIX nos é apresentado, sob o olhar crítico de Eça.Carlos ia formar-se em Medicina, curso para o qual tinha descoberto a vocação, quando, ainda criança, encontrou no sótão " um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas ", tendo passado dias a recortá-las e a distribuí-las pelas paredes. Um dia irrompeu mesmo pela sala, a mostrar às Silveiras e ao Eusebiozinho a imagem de um feto no útero materno, o que escandalizou as senhoras, mas obteve a indulgência de Afonso, que louvou a curiosidade do neto em relação ao funcionamento do corpo humano. A partir daí, D. Ana não consentiu mais que Carlos brincasse sozinho com Teresinha, mas as outras pessoas concordavam que Carlos mostrava vocação para a Medicina.
Em Coimbra, enquanto estudou no Liceu, Carlos interessou-se sempre mais por anatomia e, numas férias, a criada Gertrudes, num momento em que desfazia as malas de Carlos, fugiu espavorida, ao deparar com uma caveira. Aliás, sempre que algum criado da quinta adoecia, Carlos consultava os livros, tentando fazer diagnósticos, e já merecia o respeito do médico da quinta, que o tratava por colega. Alguns frequentadores da quinta viam o Direito como uma escolha mais acertada para um fidalgo de tão alta estirpe, mas Afonso entendia que a opção do neto deveria ser levada muito a sério, querendo que Carlos viesse a ser útil ao país, tal como o mais vulgar cidadão.
Para se instalar em Coimbra, Carlos teve direito a verdadeiras honras de fidalgo, já que o avô lhe preparou uma casa em Celas, que recebeu o epíteto de " paços de Celas ", devido à raridade dos seus luxos.
No início o diletantismo de Carlos inspirou a desconfiança dos mais democratas, mas a constatação do interesse de Carlos pelos ideais revolucionários depressa venceu as distâncias e por fim os " paços de Celas " eram frequentados por pessoas das mais diversas ideologias.
Os frequentadores dos " paços de Celas " entregavam-se a ocupações tão diversas como a esgrima, o whist, o debate das novas ideias que alastravam na Europa (a Democracia, o Positivismo, o Realismo...). Estas tertúlias contavam sempre com a presença de um criado, que servia croquetes aos convivas, acompanhados de cerveja.
Carlos, ao mesmo tempo que se dedicava à Medicina, ocupava-se também com a Arte e a Literatura, tendo publicado alguns sonetos e um artigo sobre o Pártenon e tendo mesmo chegado a compor contos arqueológicos e a tentar a pintura a óleo.
Carlos foi obrigado a moderar o seu diletantismo e a sua dissipação intelectual, pois, se não fosse um fidalgo tão rico e conhecido, ter-se-ia arriscado a chumbar.
Afonso da Maia vinha, às vezes, passar umas semanas a Celas e se a princípio a sua presença causava intimidação, a sua simpatia, interesse pela arte e literatura foram cativando os frequentadores da casa.
Carlos passava as férias grandes em Lisboa, Paris ou Londres, mas os Natais e Páscoas eram passados em Santa Olávia, que Afonso ia embelezando com luxos de um requinte francês e inglês, mas a existência neste espaço ia-se tornando mais triste, devido à doença, ao envelhecimento e à morte de alguns dos seus habituais frequentadores. As férias só eram divertidas para Carlos quando tinha com ele o seu amigo João da Ega, que também merecia a simpatia de Afonso.
Ega estudava Direito em Coimbra, com pouco afinco, e a sua mãe, uma mulher viúva, rica e beata, que vivia retirada numa quinta, perto de Celorico de Basto, na companhia de uma filha, também viúva, rica e beata, contentava-se com a promessa, feita pelo padre Serafim, de que o seu filho terminaria um dia o curso. Aliás, convinha mais à senhora, envergonhada com a heresia e a rebeldia do filho, que ele se mantivesse afastado em Coimbra.
Ega, cuja fama de fidalgo rico lhe dava o reconhecimento das famílias, vivia enredado em amores por meninas de quinze anos, filhas de empregados, e o próprio Carlos, que escarnecia destes amores, acabou por se envolver num amor adúltero com a mulher de um empregado do Governo Civil, mas, num dia em que viu o marido enganado a passear com o filho pela mão, sentiu vergonha do seu acto, desistindo da sua aventura.
A segunda aventura sentimental de Carlos em Coimbra foi quando instalou uma rapariga espanhola, com aspecto de " Dama das Camélias ", numa casa ao pé de Celas. Esta espanhola começou a tornar-se insuportável aos amigos de Carlos, devido ao seu conservadorismo e apreço pela monarquia, de modo que, quando Baptista, o criado de quarto de Carlos, a surpreendeu com um ator de teatro, foi usado o pretexto para que, depois de bem paga, pudesse ser recambiada para Lisboa, o seu espaço de origem.
No acto da formatura de Carlos, houve uma enorme festa em Celas, à qual acorreram todos os amigos, tendo havido mesmo uma serenata.
Carlos partiu para uma viagem de um ano pela Europa e finalmente, no Outono de 1875, veio instalar-se com o avô no Ramalhete. (DÁ-SE NESTE CAPÍTULO O FINAL DA LONGA ANALEPSE INICIADA NO 1º CAPÍTULO. ESTA ANALEPSE FOI NECESSÁRIA PARA SE PERCEBEREM AS ORIGENS DE CARLOS, TENDO EM CONTA A INFLUÊNCIA DE FATORES COMO A HEREDITARIEDADE E A EDUCAÇÃO, NA FORMAÇÃO DO SEU CARÁCTER.)
Carlos alimentava grandes projectos de trabalho e, por isso, tinha enviado da Europa caixotes recheados de livros e aparelhos de laboratório. Afonso incentivava o neto nos seus planos, dando-lhe apoio monetário.
Carlos acabou por instalar o consultório no Rossio e criou também um laboratório num antigo armazém, junto ao Largo das Necessidades.
Embora os amigos não levassem estes preparativos a sério, Carlos abusou do luxo na decoração do seu consultório e eram de tal modo sérios os seus projectos de trabalho que chegou a fazer anunciar no jornal a abertura deste consultório.
Entretanto as obras no laboratório arrastavam-se e Vicente, o seu mestre, um homem democrata que desejava expulsar a família real do país, de modo a desimpedi-lo para que pudessem governar as pessoas de saber, ia prometendo o seu avanço.
No Ramalhete, almoçava-se pontualmente ao meio dia. Os almoços eram demorados, prolongando-se para além da uma hora, pois requeriam vagares para se saborear a requintada cozinha, preparada pelo chef francês que os Maias tinham ao seu serviço. Nesses almoços participava também o próprio Reverendo Bonifácio (o gato de Afonso), deliciando-se com as suas sopas de leite.
No final do almoço, Carlos precipitava-se para o trabalho, mas nunca aparecia um único doente e Carlos, juntamente com o criado, entregavam-se à ociosidade, fumando, bocejando e lendo revistas. Por fim Carlos, cansado daquela dormência, abandonava o consultório, dando por terminado mais um dia de trabalho perdido.
Uma manhã, Carlos recebeu a visita do seu amigo Ega, que tencionava instalar-se em Lisboa, com o acordo da mãe e da irmã, já que em Celorico se tinha espalhado uma epidemia de anginas, que foi explicada como uma manifestação da ira divina, perante a presença de tão acérrimo ateu. O certo é que, com o afastamento de Ega, a epidemia desapareceu.
Ega apreciava o consultório, pasmado com o seu luxo, e Carlos apreciava também Ega, elogiando a sua figura e querendo obter esclarecimentos sobre uma Madame Cohen, de quem Ega lhe falava nas cartas e que era, afinal, uma judia, a mulher do banqueiro Cohen, com quem Ega alimentava uma aventura.
Ega inquiria sobre Afonso e o Ramalhete, informando-se sobre os seus frequentadores: D. Diogo, o Sequeira, o conde de Steinbroken, o Taveira, empregado no Tribunal de Contas, Cruges, um maestro e pianista, o marquês de Souselas e por fim o Eusébio Silveira, que entretanto tinha enviuvado. Faltavam as mulheres, porque não havia quem as recebesse. Ega opinou que era necessário introduzir-se a arte e a literatura nas soirées do Ramalhete, falando do Craft, um coleccionador de arte que tinha herdado uma fortuna.
Carlos e Ega discutiam as novas ideias, comentando o atraso de Portugal, mas, quando bateram as quatro horas, Ega apressou-se a sair, revelando sinais de aventura.
- Ega estava hospedado no hotel Universal e não aceitou o convite de Carlos para se hospedar no Ramalhete.
À saída, Ega ainda informou Carlos que iria publicar o seu livro, aquele livro sobre o qual tinha falado durante dois anos, cujo título seria " Memórias de Um Átomo " e cujo assunto seria a " História das grandes fases do Universo e da Humanidade ".