O Diabo

144 9 52
                                    

A lição mais recorrente na vida de Wanda Eisenhardt foi ensinada pela sua mãe. Era um pensamento simples — repassado por uma mulher igualmente simples e lúcida — que dizia que cedo ou tarde, todo homem se revelaria. A jovem mais do que acreditava nessas palavras, ela enxergava tais revelações acontecerem diante de seus olhos, de modo que compreender o que as pessoas eram capazes de fazer não se mostrava um enigma absoluto. A maioria não se entregava imediatamente, é claro, mas não havia quem não deixasse escapar aqui e ali pedaços de suas crenças e intenções, como mosaicos. Às vezes eram imagens bonitas, às vezes não. Talvez não significassem nada. Wanda apenas observava com atenção e discernia quando pequenas peças dos homens poderiam ser afiadas demais, sangrentas demais.

Era uma pena que a compreensão sobre o que as pessoas podiam fazer não lhe dava plena certeza do que elas efetivamente faziam em determinados momentos. A compreensão e o senso de perigo, na verdade, sequer havia garantido que Wanda e seu irmão ficassem livres de uma vida oscilante, enredados em uma teia repleta das pessoas erradas e peças muito, muito pontiagudas de um quebra-cabeça maior. Era como caminhar no escuro com uma fonte valiosa — porém limitada — de luz, que não protegeria-lhe de certas ameaças até que estivessem perto demais. De qualquer maneira, o ensinamento de sua mãe ainda estava vivo na mente da jovem e era uma das frases que Wanda mais se lembrava, ao lado das memórias doces e do broche que havia recebido antes que Magda fosse levada pela gripe espanhola em 1918. Se o ensinamento falhasse, o broche pesado protegeria-lhe do mal.

E Wanda preferia acreditar nisso.

Passou as pontas dos dedos em um gesto distraído sobre a superfície de ferro pesado banhado em prata, depois nas gotas de pedras vermelhas. Não era uma jóia exatamente valiosa em comparação à ostentação que o cassino pedia — ou ao que o senhor Emerald exigia de suas garotas mais bonitas — entretanto, Wanda alfinetava-a sempre em seus vestidos, usando o broche em todas as madrugadas. Sempre vestia a cor escarlate.

Ela estava sentada em frente ao balcão do bar, com uma taça de bebida em sua mão e um sorriso falso estampado no rosto. Não ousava vacilar a expressão, uma vez que suas tarefas ali se resumiam a jogar um pouco, ser atraente e agradável, estimular os clientes a beberem e — mais importante — apostarem mais. Não estava no cassino para ser uma jovem preocupada e triste, não era paga para isso. O quanto era paga não convém a conversa. Caso um dos rapazes do senhor Emerald notasse sua indisposição, haveria consequências. Portanto, ainda que suas mãos tremessem um pouco e gotículas de suor teimassem em brotar em sua testa, Wanda somente tirou uma piteira de sua bolsa e acendeu o cigarro na ponta com um isqueiro.

Havia música no ar, risadas. Piano, trompetes. Exclamações de homens que perdiam e ganhavam dinheiro, gritinhos empolgados de mulheres com bebidas nas mãos. Era tudo tão colorido e tão lindo que Wanda quase podia fingir que aquela era uma realidade diferente, na qual a madrugada se limitava a risos e os problemas desapareciam quando o garçom trazia outra rodada de gim. Quase podia fingir que a alegria era eterna e doce e fútil.

Mas Wanda não era apenas uma dama que veio ali para uma dose de aventura. Ela era uma peça da decoração que se misturava ao cenário e tinha uma posição e funções muito bem definidas. Sorria com os lábios perfeitamente pintados, vez ou outra soltando a fumaça do cigarro. Neste momento, uma voz macia chamou-a:

— Se não é a Dama de Ouros...

Uma pessoa se aproximou, um homem com colete e gravata borboleta. Ele mostrou a carta em questão para Wanda, num gesto elegante de flerte, ao mesmo tempo se referindo a ela pelo nome da carta. Tratava-se do crupiê da mesa mais próxima — agora vazia de apostadores — um rapaz de sotaque francês chamado Remy LeBeau. Ao contrário do que todos assumiam, ele não era de fato francês: vinha de Nova Orleans. A razão de ter saído de lá jamais havia ficado clara, afinal, Remy narrava uma versão diferente para cada um que ousasse questionar.

Art DécoOnde histórias criam vida. Descubra agora