Parte I

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— Há doze anos — começou a dizer, chorosa, a Sra. Lermen —, após a morte de Peter, meu marido, num trágico acidente de carro, ali na esquina, prometi a mim mesma que iria proteger minha filha do mundo lá fora e não mediria esforços para isso, afinal, dinheiro não faltaria. Ela iria crescer aqui, dentro de casa, sempre sob a minha proteção e nada aconteceria. Mas, hoje, por volta da hora do jantar, às 18h50, quando me deparei com este quarto vazio, a janela arrombada e um bilhete sobre a cama exigindo que a polícia não fosse avisada, fiquei desesperada. Ela só tem treze anos... Não podia ficar inerte, entende? Ouvi falar muito bem de seus serviços, por isso, mandei o motorista buscá-la imediatamente. Por favor, ajude-me!

Segurando o bilhete, Donati assentiu e, por alguns instantes, permaneceu quieta, analisando os objetos e móveis que adornavam o seco quarto de Melina Lermen. Per l'amore di Dio, resmungou, censurando a decoração. Foi até a janela, buscando ar fresco, e viu toda a grama do jardim podada e o imenso muro com cerca elétrica que circundava a propriedade. — Um belo jardim, pelo menos — disse, saindo de perto da janela. E, revigorada, começou a vasculhar o recinto. Havia obras de Agatha Christie e livros didáticos numa escrivaninha de mogno, uma cronologia de atividades colada na parede, um guarda-roupa e aquilo... Como uma raposa prestes a atacar, peregrinou até o criado-mudo, agarrou o porta-retrato e, com os olhos cerrados, compreendeu o pavor de Dieteze.

— Nas últimas cinco horas, alguém telefonou para combinar o resgaste de Melina Lermen? — questionou Donati, mas o silêncio instalou-se no apertado recinto. Ela olhou para a fotografia de novo e refletiu: Oh, non è uno sequestro comune. E averiguou — Fala alemão, Sra. Lermen?

— Sou brasileira — disse ela. — Peter, sim, era alemão.

— Dieteze fala alemão, não é?

— Sim. Ela era a secretária do meu marido, na Alemanha. Quando Peter veio para o Brasil, trouxe-a consigo. Hoje em dia Dieteze cuida da organização da casa e, junto com o Sr. Rubder, da educação de Melina... Mas o que isso tem a ver com minha filha?

Donati retirou a fotografia da família Lermen do porta-retrato e colocou sob a luz. A Sra. Lermen levou a mão a boca. A palavra RACHE tinha sido escrita acima da cabeça de Peter com tinta vermelha.

— O que significa, detetive?

— Vingança — respondeu, pausadamente.

— Eu não entendo — disse ela, pálida.

— O passado — Dieteze começou a falar — é uma maldição, Sra. Lermen. Ele era muito jovem para compreender as consequências do que tinha feito. Pensou somente no futuro dele e negligenciou duas vidas, deixando-as definhar na Alemanha. Um dia Deus iria puni-lo. Eu só não imaginava que a maldição cairia sobre os ombros da sua filha.

— Que absurdo, Dieteze — revidou a Sra. Lermen.

Donati deu um pulo, murmurando algo em italiano.

— Fiz o meu dever de casa, Sra. Lermen — puxando algumas páginas dobradas do bolso. — Enquanto seu motorista contava-me tudo o que queria saber sobre o desaparecimento de Melina Lermen, solicitei a um amigo para fazer uma pesquisa sobre os Lermen, que li durante a vinda para cá, e, em todas as informações encontradas, havia sempre menção ao misterioso passado do patriarca desta família, visitante frequente de "casas noturnas". Já dizia a música: sexo, drogas e rock and roll. Órfã e único dono do império Lermen, o mundo era mesmo pequeno. Presumo que, no auge da juventude, Peter teve um filho com uma meretriz e, para não haver extorsão, deixou seu país à surdina e construiu uma nova vida no Brasil.

— Mas isso é um absurdo — a Sra. Lermen gaguejava.

— Uma vida sem muitos holofotes, diga-se de passagem — continuou Donati. — Peter sempre foi escorregadio diante de jornalistas, até falecer... Quem imaginaria que haveria mais de uma vítima com um forte vínculo com a Alemanha no trágico acidente de carro? Virou manchete global... Casou cinco vezes, fora as amantes. Nada de filhos? Ora, um homem precisa de herdeiros. Ah, os traumas do passado. Peter jamais quis filhos. Curiosamente, a senhora foi a última esposa, e a única a ter tido um filho com ele. Por favor, eu não ficaria surpresa se alguém aqui me disser que a Melina Lermen é filha do motorista ou que foi uma gravidez indesejada, qualquer uma das alternativas deixaria Peter tão atormentado com os ecos do passado que uma hora ou outra esqueceria de dar a seta no cruzamento e...

Atônita, a Sra. Lermen engoliu em seco.

— Desculpe — Donati sorriu, afetuosa. — Estamos aqui por causa do desaparecimento de Melina Lermen, então não me interessa o tititi dos corredores deste lugar que mais parece uma prisão norueguesa do que um lar. Voltemos para a ideia do possível bastardo...

— Sim... O bastardo é o responsável — afirmou Dieteze.

— Peter não falava do passado — conseguiu dizer Sra. Lermen.

— Alguém estranho entrou na casa? — indagou Donati.

— O pai do Sr. Rubder veio aqui — revelou o motorista.

— Sr. Rubder... Rubder... — repetia Donati, olhando para a escrivaninha de mogno. Indo até lá, localizou um caderno de anotações da aluna Melina. E falou para si: — Como não reparei antes?! 

A Sra. Lermen interveio.

— Pelo amor de Deus, um homem velho e gordo, Detetive! — O motorista ruborizou-se e ela continuou: — Foi uma visita rápida. Eu sei que foi a primeira vez que ele apareceu aqui, mas sendo tão velho e pesado só mesmo com um bom motivo para sair andando por aí. Às 18h ele trouxe um recado do filho adoentado e alguns livros. Disse-me que Rubder ficaria indisponível por alguns dias, deixou os livros com Melina e se foi.

— Ele entrou no quarto para entregar os livros, Sra. Lermen?

— Sim, afinal, Melina raramente saía do quarto.

— Entendo. Então, ele foi o último a vê-la?

— Sim, já que só entrei no quarto às 18h50.

— O pai do Sr. Rubder é alemão?

— Acho que sim.

Os olhos de Donati brilhavam.

— E o jardineiro, Sra. Lermen?

— Já tinha saído. E o que isso importa?

Donati aproximou-se da parede e explicou:

— No cronograma de atividades da sua filha há uma pausa de quase uma hora do Momento de Leitura por causa do jardineiro. Das 17h50 às 18h30. O barulho do cortador de grama deve ser insuportável, não?

— Um pouco — disse a Sra. Lermen.

— Pois bem, acho que já sei o que aconteceu aqui. 

DIANA DONATI - O Caso do BastardoOnde histórias criam vida. Descubra agora