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Os últimos raios de solAs paredes do quarto já haviam se esfriado depois da despedida do sol. Restavam apenas alguns sinais de que a noite acabara de entrar, como o repentino frio que se adentrara no quarto, o canto de uma cigarra ao longe e o sangue ainda se esvaindo do corpo imóvel recostado à cama.
Lucas ainda podia ouvir - não as buzinas ou o barulho de pedestres na rua à frente - mas vozes que ah muito tempo não se ouvia ou se lembrava. A primeira lembrança, ainda recente, foi a de sua melhor amiga, que quando ao visitá-lo disse em uma voz triste de lamento: "Foi-te tamanha a desgraça, que te esquecestes como se vive, Lucas. Perdeste a capacidade de colocar um sorriso nesse teu rosto e até mesmo a de existir. Vejo morte em teus olhos e não vejo a mínima vontade de escondê-la. Vejo, agora, que a morte não é essencialmente física e que, às vezes, é apenas menos indigerível."
Ela, sempre ao seu lado, conhecia e entendia-o como os astros do céu, enegrecido e esbelto, que tanto lia sobre. Helena sabia que as dores de uma vida toda - sofrida e desafetuosa - tinha lhe tornado amargurado e a muito tempo isento de qualquer perspectiva.
O último golpe, o cheque mate, foi a cartada final pra um descompassado e trágico fim. A última vez que visitara o quarto de Lucas e olhara em seus olhos, duvidou se um dia poderia ver novamente o sorriso do amigo ou até mesmo a vontade de tê-lo no rosto. Ao se despedir não conteve as lágrimas e, aos prantos, sentindo-se culpada por nada poder fazer, prometeu que desculparia o amigo em qualquer escolha.
Lucas aos poucos conseguia ver minúsculos pontos brancos à medida que abria os olhos. Deitado, sentia o chão úmido e áspero de areia. Recobrando seus sentidos, pôs-se de pé e observou o negro e silencioso lago a sua frente. Ao olhar para o céu, viu do que se tratavam os minúsculos milhões de pontos brancos, estrelas, agora claramente visíveis e brilhantes. Apesar de tantas pequenas luzes no enegrecido céu, tudo à sua volta era escuridão e desconhecido. Tudo o que tinha à vista era um enorme lago banhado pela luz dos astros, que emitia uma sensação fria e mórbida. Sabia que não poderia se afastar dele. Era como se suas forças estivessem sendo puxadas para o interior daquela imensidão de águas escuras.
Via escorrendo, margem abaixo, gotas turvas que iam de encontro ao lago, que se enchia mais rápido a cada instante. Suas pernas tremularam sem forças e caiu ajoelhado na beirada. No plano das águas via seu seu reflexo, as estrelas e tristeza. Tristeza causada pelo gelado lago que aos poucos congelava o corpo e os pensamentos de quem se aproximasse.
Lucas, ao contrário de qualquer outra pessoa, não sentia medo, apesar do estranho lugar, sombrio e desconhecido. Sentia pena de todos que imaginava já terem passado por aquele lugar. Imaginava do que se tratavam as gotas enegrecidas que iam de encontro ao lago. Tinha muita vontade de estar errado.
Era realmente perturbadora, a sensação que aquele lugar emanava. Olhou pra cima e percebeu que, uma a uma, as estrelas sumiam, como se estivessem se apagando. Suas forças se esvaiam a cada instante de pensamento e os joelhos já não aguentavam mais o peso de toda sua carcaça. Deu apoio com as mãos para não cair, e ao tocarem a superfície do lago sentiu um frio descomunal. Em condições normais, aquele lago deveria estar congelado. De alguma forma sabia que aquele lago não era como os outros. Éram somente Lucas, as estrelas - que estavam desaparecendo, e o lago naquele lugar desesperador.
