1 - A porta que não se deve abrir*

136 25 18
                                    

150 anos atrás.

Era dos Deslocamentos.

Início da chamada 'Queda dos Reis'.

O Deserto Sem Fim.


Resgatando a mente de um plano distante, a princesa concluiu sua prece. Mantendo as mãos espalmadas ao lado do corpo, tirou suavemente a testa do chão de terra. Minúsculos fragmentos de areia caíram de sua pele. Outros, pontiagudos, mantiveram-se, espetando a carne em uma mordida da qual não se julgava no direito de reclamar. Dor e sofrimento seriam oferecidos a seu povo como um banquete naquela noite. Como monarca derradeira da linhagem, deveria ser a primeira a se servir.

Colocando-se de pé, caminhou pela tenda vazia. O conceito de vida pós-morte dos Andarilhos era vago, abstrato. Por isso, não vendo sentido em guardar pertences, a princesa desfizera-se de tudo, doando a povos cujo futuro parecia mais auspicioso. Ter insistido em um estilo de vida não sancionado talvez tivesse de fato sido um erro, ela pensou. Logo descartou a ideia, porém. Reflexões incapazes de gerar novos caminhos não passavam de lamúrias vazias.

Fora da tenda, foi envolvida no abraço apertado do frio. Percebeu que aquilo não era o frio natural do deserto. Aquele universo gelado era fruto de outras forças. A morte caminhava pela caravana naquela noite, indo de tenda em tenda, visitando habitante a habitante no íntimo de seu leito. O tributo que os Andarilhos por séculos se recusaram a pagar seria agora cobrado em sangue. Os Protetores forneceriam o metal. Mas, como sempre, não sujariam as mãos.

Apertando os olhos, a monarca discerniu a caverna ao longe e pôs-se a caminhar, seus passos trôpegos e assustados. Restava-lhe um último objetivo, uma oportunidade final de impedir o extermínio de seu povo. Se o júbilo - e o fardo - dos Andarilhos era caminhar sempre em busca de um novo caminho, ela assim o faria. Com todas as direções vedadas, sobrara-lhe apenas um recurso: a porta que não se deve abrir.

Concentrada, puxou as barras do comprido vestido azul marinho e apertou a passada. De capuz levantando e mantendo o corpo arqueado, ziguezagueou entre as tendas banhadas de poeira, tomando caminhos alternativos a fim de manter-se escondida.

Cerrando os dentes, fazia o possível para ignorar os gritos, as súplicas e as gargalhadas macabras. O desespero trágico de um lado era rivalizado pelo prazer sinistro do outro. Clamando pelo perdão de seus súditos, ela seguiu, rezando - e alguma divindade ainda os atendia? - para que ao menos os envolvidos no ritual houvessem alcançado o destino. Percebeu que ao sul o fogo já começava a lamber o complexo.

O som de passos apressados e o clangor do metal gelaram o corpo da princesa. Ao dobrar à direita, lá estavam eles.

- Veja só quem temos aqui! -, a prata reluziu nos olhos da monarca quando o soldado abriu os braços, gesticulando com a espada.

- Quem é essa?, o companheiro questionou.

- Ora, é um imbecil mesmo. Olhe o vestido. Só a nobreza vagabunda deles usa essa cor. E, bem... -, o homem levou uma mão ao queixo, a manopla banhada de sangue. - ...se rei e rainha foram mortos no Conclave, essa só pode ser a princesa.

- A princesa! -, o esclarecimento foi substituído em instantes pela lascívia. - Sabe, Aaron, nunca fiz com uma princesa.

- Pela sua cara feia, sequer com um chimpanzé deve ter feito. Par ou ímpar? Vamos ver quem vai primei...

Meia lança surgiu do peito do homem antes que ele concluísse a palavra. Os olhos sem vida deslizaram junto do corpo morto pelo cabo da arma fincada no chão.

O companheiro brandiu a espada, o braço tremendo. A cada giro do corpo, um vulto o golpeava. Panturrilha esquerda. Braço direito. Pescoço. O sangue espirrou como um gêiser. Morto, desmoronou ao lado do outro.

- Precisamos ir, princesa! -, a algoz do primeiro soldado exclamou.

Desprendeu a lança do chão e, com um gesto rápido, limpou o sangue que manchara o branco imaculado da arma. Colocou o corpo à frente da princesa e indicou à outra mulher, que dera cabo do segundo homem, que se posicionasse atrás.

As Irmãs Alvas. O adjetivo se devia ao branco de suas armas e suas vestimentas, cujo contraste com a pele negra era inusitado. Descritas como as mais competentes guarda-costas de Maasai San, haviam se recusado a endossar o voto de seu governante no Conclave, que pendeu a balança a favor do deslocamento forçado dos Andarilhos. Sabiam do ritual. Queriam vê-lo realizado.

Atingiram a caverna sem oposição. Lá dentro, pareciam em outro mundo. A temperatura amena acompanhava o silêncio tranquilo do ambiente. Os gritos não chegavam, a morte ainda distante. Ainda. A princesa sempre soubera haver algo mágico no local. Inúmeros canais estreitos serpenteavam pelo lugar. Tomando o demarcado, avançou ao ponto do ritual.

Abrindo-se em uma espécie de clareira, a claustrofobia dos canais dava lugar à amplitude de um salão que parecia tudo menos natural. De um sem-número de estalactites, a água pingava em largas gotas. Estalagmites demarcavam os cantos. O centro, desobstruído, trazia as runas desenhadas.

Dispostas nas extremidades de dois círculos desenhados lado a lado, as elegantes inscrições brilhavam num tom de amarelo vivo, pulsando. Aumentando. Reduzindo. Aumentando.

No círculo à esquerda, o Passado. Os decanos dos sábios. A princesa foi até eles e, retirando o punhal da manga do vestido, traçou um corte horizontal na mão direita. Imersa, fez pouco da ardência. Apertou a ferida e deixou o sangue escorrer. No mesmo instante, um brilho azul tomou as runas, aliando-se ao amarelo.

No círculo à direita, o Futuro. As mais jovens dentre as crianças, sobre cujas costas desabaria o peso de reerguer em outra era aquele povo condenado. A princesa não invejava esse destino. Repetiu o procedimento, rasgando a mão esquerda. As crianças encolheram-se, algumas escondendo os rostos nas demais. A cor azulada espalhou-se.

A princesa viu a energia erguer-se nas extremidades, cobrindo os círculos. Percebeu uma luminosidade branca intensa emanar da área em que os círculos se encontravam. A Interseção. Ciente de que o momento enfim chegara, ela se posicionou no local. Percebeu sua consciência oscilar, a visão embaçada e a audição distante. Segurou o punhal com as duas mãos, o sangue ainda pingando, e virou a ponta contra o próprio peito.

Respirou fundo e atacou.

Assim que a lâmina perfurou seu corpo, sentiu o sangue correr pela garganta, chegando em instantes à boca. Dispôs de suas últimas faíscas de vida para completar o movimento. O punhal desceu queimando como fogo, estendendo o talho do peito ao umbigo.

O Ritual completo, o mundo parou por um milésimo.

E então, tal qual um turbilhão no mar revolto, o rasgo aberto no tecido da existência sugou tudo para dentro de si. A princesa, as crianças, os anciãos, as Irmãs. A caverna, as tendas, os soldados em seu frenesi assassino. Tudo num raio próximo foi engolido, mastigado e cuspido. Em algum lugar. Em lugar nenhum. A desordem se espalhou, abrindo fissuras por onde passava. Imperceptíveis para muitos. Manipuláveis para alguns.

O milésimo passado, o povo salvo - ou não -, as brechas permaneceram.

Assim, foram abertas as Fendas no Equilíbrio.


* O relato acima é parte do segundo volume das 'Narrativas dos Deslocamentos Forçados'. A veracidade dos acontecimentos aqui apresentados não pôde ser confirmada de forma independente. Além disso, não integram a bibliografia oficial sobre o período.

Fendas no Equilíbrio  (As Crônicas de Além-Mar - Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora