Feito um sudário, as trevas a tudo envolviam, o breu espalhando tentáculos por cada fresta e rachadura, sedento a reclamar qualquer espaço inocupado. No céu, a lua permanecia desinteressada, escondida em nuvens encorpadas. O vento corria com entusiasmo, carregando um odor acre que dava toques finais ao panorama.
Agachado, Lucah forçava as vistas a absorver o quadro singular que se descortinava.
Guiado até ali pelas lanternas - cuja luz se apagava tão logo se aproximava –, a cena poderia ser mero complemento às crianças misteriosas. Com uma singela diferença. Se o surgimento – e desaparecimento - repentino dos Jiangnii causara apreensão, algo no âmago de Lucah garantia não serem ameaça.
Agora, porém, seus músculos tensos alardeavam os riscos.
Erigida em um declive, a Praça remetia a um teatro. Dispostas num semicírculo, suas arquibancadas – sobre as quais mais areia que pedra restava – desciam cinco lances de degraus até o palco. E neste, como se encenando uma tragédia, duas criaturas bizarras acuavam uma jovem e uma criança.
Lucah os assimilou como cães. Cães enormes. Pelos negros e grossos em tufos desgrenhados cobriam patas, cabeça e traseiro. No torso nu, costelas protuberantes rivalizavam com enormes cicatrizes. Um brilho rubro salientava feridas abertas, das quais pus e casca supuravam. Do pescoço, maciças correntes pendiam por mais de um metro, os elos negros raspando o chão feito gritos de agonia.
O rosnado gutural esmurrava o silêncio da noite conforme avançavam, ignorando a tocha que de maneira tão corajosa quanto inútil a menina bradava. A criança se agarrava às calças dela, o rosto mergulhado nas costas do casaco.
Não vai fazer nada, moleque?
Lucah não se via como herói, longe disso, mas sabia que precisava agir. A convicção o consumia, berrando que tinha sido conduzido pelos Jiagnii justamente para intervir.
Tanta prática, tanto treino! Será que têm serventia quando as espadas não são de madeira? Quando os bonecos revidam? Quando os perigos são reais, será que a teoria é mesmo capaz de salvar alguém?!
Lucah buscou alento em Gorn e tudo que viu foi determinação. Como sempre. Gorn, uma ilha de calma no mar tempestuoso. Segurança e incentivo para seguir em frente.
Humpf, já vi essa história antes. Tanto ladra, mas pouco morde. Admito não estar surpreso!
Como "incentivo", a voz crítica do pai também estava sempre lá. Censurando, cobrando, esperando - exigindo – mais. O preço era alto, ele sabia. A cada estímulo, uma ferida. Mas funcionava.
Impulsionado, avançou em silêncio.
Desceu as arquibancadas à esquerda, de cócoras, Gorn pelo lado oposto. No último lance antes do palco, tomou distância e saltou, os braços erguidos, as facas como presas famintas.
O cão percebeu a aproximação e tentou uma esquiva. Tarde demais. Lucah desceu sobre ele, lâminas curvas mordendo pescoço, rasgando pele e devorando a carne, o sangue esguichando quente e escuro. Rolou para o lado, empurrando o bicho com o pé. O corpo estrebuchou e ficou imóvel.
À direita, viu Gorn com os dentes cravados no pescoço do outro cão. Este, bem maior, balançou o corpo e se livrou da mordida. Fez menção de atacar, mas foi impedido ao ter seu corpo virado por completo. Enrolando a corrente nos dois braços, Lucah puxou com tudo e o recebeu com um chute, bota conectando ao crânio do bicho. Com um ganido, sustentou-se em patas trêmulas, sangue deslizando por cabeça e pescoço. Ofegando, fitou o rapaz com olhos fundos e vermelhos, de onde provinha a luminosidade avermelhada. Arqueou o corpo no exato instante em que a jovem voou sobre ele, tocha golpeando agressiva feito martelo de ferreiro, esmagando o crânio em uma massa disforme.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Fendas no Equilíbrio (As Crônicas de Além-Mar - Livro 1)
FantasíaQuão estável pode ser o equilíbrio quando somente de uma das partes é exigido sacrifício? Se a um único mundo cabe toda a responsabilidade de sustentar a aliança entre cinco, é inevitável que o responsável acabe fraquejando. Sob pressão constante...