CAPÍTULO 1

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Olho para minhas mãos ensanguentadas. 

“O que foi que eu fiz?”

Já consigo sentir os Nanocops vindo em minha direção, eles sempre sabem quando há algo de errado. Corro para meu quarto, limpo minhas mãos em uma camisa velha e pego meus pertences mais importantes: meu kit de primeiros socorros, que segundo a minha mãe, eu devo levar sempre comigo; meu guia, minhas lentes de informação, minha máscara de ar e todas essas buljingangas que Céletos normais tem que carregar. Pego também meu cartão, que não contém muito dinheiro, mas talvez me ajude em alguma coisa, algumas roupas e claro, não poderia esquecer Liana, minha bonequinha de porcelana, que me acompanha desde que eu tinha 10 anos, para todo lugar que vou, sem exceções.

Vou em direção ao Transformador, uma engenhoca que meus pais inventaram (e eu não faço a menor idéia do por quê), capaz de mudar as suas informações no sistema de lentes, e também mudar um pouco a sua aparência. Observo no espelho meus cabelos negros e cacheados se tornarem castanho escuro, meus olhos pretos passarem para um mel esverdeado, minha pele negra se transformar em uma tonalidade branca que me é estranha, e meus lábios carnudos ficarem tão finos que por uma fração de segundo penso que desapareceram.

O efeito do transformador dura no máximo uma hora e quinze minutos, segundo os estudos de meu pai. Esse é o tempo que eu tenho para fugir daqui.

⎯  Liana! – chamo. – marque uma hora e quinze a partir de agora, por favor.

⎯  Pode deixar! – ela diz colocando a cabeça pra fora de minha mochila – Inclusive adorei a transformação de hoje! Os cabelos castanhos ficam bem em você!

⎯  Quem sabe se um dia voltarmos aqui, eu não te coloque lá dentro para dar um up no seu visual? – falo vestindo meu macacão de atletismo azul marinho, feito para qualquer temperatura, seja calor escaldante ou frio congelante.

⎯  Nem pensar! Eu já sou perfeita! Não preciso dessas coisas! 

Dou uma risadinha e ela me retribui com um sorriso sapeca, é impressionante como Liana, apesar de ser meio robô e meio orgânica consegue agir normalmente algumas vezes.

⎯  Como estão minhas informações? – pergunto pegando algumas latas de comida.

⎯  Segundo o sistema de lentes seu nome é Celeste Reese, você tem 23 anos, é casada e tem um filho de um ano chamado Christian. A verdadeira Celeste mora no sul da ilha, então não tem perigo nenhum de o marido ou alguém da família dela nos reconhecer.

⎯  Ótimo, a última coisa que eu preciso agora é fingir ser alguém que não sou... E olha que engraçado! Essa vai ser a primeira coisa que eu vou ter que fazer assim que sair desta casa!

Liana fica calada, e sei que ela ficou estressada com o meu comentário, ela odeia isso tanto quanto eu, pois  também não pode ser ela mesma fora dessas paredes, ela tem que ser apenas uma bonequinha de porcelana. Essas foram as condições que meus pais impuseram quando a aprimorei. Antes ela era apenas uma boneca de porcelana, mas com alguns ajustes eu a transformei em minha melhor amiga. Mas que diferença faz essas condições agora? Os dois não estão mais aqui para me trancar na cápsula por ter desobedecido. Um leve sorriso passa pelo meu rosto com esse pensamento. 

Configuro a casa para entrar em quarentena assim que eu sair, o que me garantirá mais algum tempo, já que vai impedir os Nanocops de entrar e verem os dois corpos caídos no laboratório. Nem olho para eles, não depois do que eles fizeram comigo, não depois de terem me tratado feito uma cadela de procriação.

Termino de fazer minha mala, pegando apenas as coisas essenciais e observo minha casa, a casa em que vivi raríssimos momentos bons e incontáveis momentos horríveis. A casa em que eu me tornei fria e sem vida. Não quero voltar aqui nunca mais, e agora não existe mais ninguém para me obrigar a fazer qualquer coisa que eu não queira. Saio da casa, e a vejo se trancar, trancando consigo todo meu passado de dor e sofrimento.

 O lado bom de ser filha de um pai formado em mecânica, e uma mãe formada em ciência, é que você cresce aprendendo a viver esse mundo de hoje, onde tudo depende das duas coisas. O lado ruim, é que a mecânica e a ciência tendem a gostar de fazer testes e experimentos, e é ainda pior se você for a cobaia deles.

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