CAPÍTULO 2

1 0 0
                                    

Está frio na floresta, mas meu macacão de atletismo ajuda bastante e acho que nem vou precisar acender uma fogueira essa noite. São quatro dias de caminhada (contornando a cidade) até o antigo chalé de minha falecida avó, o qual eu passava todas as minhas férias quando era criança. Quando eu ainda não era aterrorizada por pesadelos todas as noites, e tinha uma vida quase normal. 

Já percorri esse trajeto várias vezes, como treinamento. Meus pais eram rigorosos em relação ao meu físico. Foram horas levantando pesos, praticando esportes peculiares, lutando, correndo, escalando, etc. Pelo menos dessa parte do dia eu gostava. Ainda gosto na verdade. Adoro levar meu corpo ao limite, sentir a dor nos músculos de uma longa sessão de treinamento, sentir o suor escorrendo pelas minhas costas e ter a sensação triunfante de ter me superado, superado meus próprios limites.

Agora eu estou colocando todo esse treinamento em prática, escalando uma montanha no meio da noite, com uma mochila de aproximadamente 10 kg nas costas, e uma boneca que não para de sussurrar cantigas no meu ouvido. Isso costumava me acalmar. Quando eu estava muito nervosa e não parava de estalar os dedos ou arrancar fios de cabelo um por um, Liana cantarolava baixinho até eu pegar no sono e acordar mais calma algumas horas depois. Infelizmente essa tática não está funcionando hoje, eu estou consumida pela raiva, fervendo de ódio, mas também estou com muito medo. Aterrorizada na verdade.

Se o governo me encontrar, vai ser muito pior que todos esses anos de testes e experimentos com meus pais, eles vão me prender em uma cela e me estudar como se eu fosse um rato de laboratório. Não que eu não me sentisse uma rato de laboratório quando meus pais me estudavam, mas agora que eu me livrei deste fardo, não quero ter que carregá-lo de novo. 

O governo não vai ligar se eu sou ou não um ser vivo, eles só vão se importar com o fato de eu ser a cura para toda a espécie de Céletos, eu tenho genes humanos normais em mim, e é isso que eles querem desde que a radiação chegou e deixou todos fracos e com a imunidade super baixa. E não importa o quão inteligente todos eles tenham se tornado com o passar dos anos, ninguém nunca conseguiu uma mutação saudável e bem sucedida. Bom, ninguém exceto meus pais, que cruzaram vários genes dos quais eu não me importo, encubaram no corpo de minha mãe e fizeram com que eu nascesse cem por cento saudável e forte como um humano, ou talvez até mais. Nunca tive a oportunidade de me comparar com um humano, eles são proibidos de entrar na ilha, pois podem trazer doenças e vírus mortais para as pessoas frágeis de Selcium.

O meu nascimento quase matou minha mãe, ela ficou muito fraca e houve várias complicações durante o parto que a fez ficar de cama por um mês e doze dias. Ela só sobreviveu porque meu pai construiu um protótipo que repunha os hormônios e vitaminas normais de uma pessoa a cada duas horas e o instalou em sua medula óssea. Era uma coisa estranha, várias esferas ao longo de toda a sua coluna vertebral, parecendo ossos crescendo de dentro pra fora. Ela usou esse protótipo por quatro anos, depois seu corpo se recuperou e começou a fazer esse trabalho sozinho. Se tudo tivesse corrido bem, talvez meus pais não precisariam de um filho meu, talvez eles não teriam agido daquele jeito comigo, talvez tudo fosse diferente.

Saio de meus devaneios quando tropeço em um galho e quase caio de cara no chão.

⎯  Kiara! Desse jeito você vai chegar ao chalé toda quebrada! – disse Liana assustada com o tombo. – e vai acabar me levando junto! 

⎯  Calma Liana, se você se quebrar eu prometo que te conserto direitinho. – falo acelerando meu ritmo.

⎯  Na nossa situação atual eu duvido muito que você conseguirá as peças necessárias. 

⎯  É verdade... Você se arrepende? Quer dizer... Você se arrepende de ter me ajudado nisso tudo? – sinto a culpa fervilhar em algum lugar do meu corpo.

⎯  Não! De jeito nenhum! Eu me arrependo de não ter feito isso antes. E você? Se arrepende?

Penso um pouco. Pode-se dizer que eu estou com medo das consequências, mas não me arrependo nem um pouco de ter eletrocutado minha mãe e cortado a garganta de meu pai. Liana me ajudou a matar a minha mãe, ligando a cadeira de choque, da qual eu fui presa tantas vezes, com a desculpa de que era a salvação da nossa espécie. E também deu um jeito de distrair meu pai enquanto eu prendia minha mãe e dava um fim nela, ela não me revelou como fez isso, mas funcionou. Foi bem fácil, considerando que os dois tinham a força de um bebê.

⎯  Eu também não me arrependo nem um pouco. Eles mereceram esse destino depois de tudo que fizeram comigo! – Respondo, afastando o sentimento de culpa e dando lugar a antiga raiva que eu venho sentindo desde os 10 anos de idade.

⎯  Eles eram maníacos! Quem tortura a própria filha, com experimentos e cirurgias exploratórias e tudo mais? – Vejo Liana se irritar novamente, o rosto ganhando uma tonalidade vermelha e os punhos cerrados com força.

⎯  Estamos livres agora. Assim que chegarmos ao chalé da vovó, estaremos seguras, pelo menos até eu pensar em um plano de fuga melhor.

E eu me seguro nesse pensamento, até minhas mãos pararem de tremer.

Kiara Onde histórias criam vida. Descubra agora