CAPÍTULO 3

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O caminho para a cidade é extenso e lotado de empecilhos, ainda estamos na floresta, com árvores altas, corujas e grilos fazendo uma sinfonia encantadora, e riachos seguindo seus cursos. Hoje o céu está limpo, o que é bem raro considerando toda a poluição que jorra das torres. A lua está grande e luminosa, com estrelas por toda a parte. Minha companheira puxa uma das mechas do meu cabelo e sussurra:

⎯  Kiara estamos quase chegando na cidade, e o efeito do transformador vai durar só mais quarenta e dois minutos! – Liana agora estava em cima de meu ombro, presa pelo cinto que fiz pra ela tempos atrás.

⎯  Não tenho culpa se meus pais construíram a casa o mais longe possível da cidade Liana! – Sussurro  de volta, pegando minha garrafa de água reciclada e tomando um gole.

⎯  Os canalhas foram espertos até nisso. Sem vizinhos, sem suspeitas. Vamos ter que andar mais rápido, a cidade está a um quilômetro e meio daqui, se você continuar nesse ritmo, chegaremos lá em dez minutos, e vai demorar mais ou menos meia hora para chegar ao bosque atrás dela, temos que apertar o passo!

⎯  Pense pelo lado positivo, pelo menos não vamos ter que contornar a cidade, como no treinamento. Isso vai nos adiantar muito tempo de caminhada! Mas também pelo lado negativo, eu vou ter que usar a máscara de ar em algumas partes da cidade... Me avise por favor quando essa hora chegar, porque sinceramente, eu não sinto diferença nenhuma no ar, continua com cheiro de fumaça e poluição. – Tomo mais um gole de água e guardo a garrafinha, me lembrando que tenho que beber apenas o necessário para que não acabe antes do previsto.

⎯  Óbvio que você não sente a diferença no ar né burrinha! Seus pulmões estão em perfeito estado e são saudáveis. Eu tenho pena dos Céletos normais... Imagine ter que ficar usando máscaras de ar e medidores de radiação em todo lugar. Eles não podem nem comer uma fruta direto do pé sem antes testar se está contaminada ou não!

Lembro de minha avó quase automaticamente quando Liana comenta sobre as frutas. Ela tinha uma estufa no fundo de seu quintal, lotada de flores e árvores frutíferas, de todos os tipos! Mas um dia houve uma tempestade de granizo, que quebrou a linda estrutura esférica de vidro que protegia as árvores da radiação. Todas as flores morreram, e as árvores ficaram contaminadas, apenas eu podia comer as frutas que raramente frutificavam. Minha avó várias vezes me perguntava que gosto tinha suas maçãs, ou qual era o cheiro das folhas de sua laranjeira. Ela ficou bem triste quando sua estufa foi destruída, tão triste, que faleceu quatro meses depois.

⎯  Ei você está me ouvindo? – Liana odeia quando a deixo falando sozinha para vagar em meus pensamentos e lembranças.

⎯  Sim e não, estava pensando na vovó e em sua estufa. Será que ainda tem frutos lá?

⎯  Acho muito improvável, já tem três anos que ninguém cuida da estufa, na verdade tem três anos que ninguém sequer põe os pés lá dentro.

⎯  Vovó ficaria horrorizada se soubesse que sua própria filha proibiu sua neta de ir lá! – Eu podia ir até a porta de entrada, mas nunca me foi permitido entrar – Não tinha minha digital configurada na casa, mas agora com isso – falo pegando o pequeno saquinho térmico com gelo, que estava armazenando o dedo indicador de minha mãe, e o de meu pai também, que peguei por precaução. – Nós vamos poder entrar lá e também configurar a minha digital no portão.

⎯  Guarde isso Kiki! Que nojo! Ainda não acredito que você conseguiu cortar os dedos deles e não vomitou, que coragem a sua.

⎯  Não é uma questão de coragem meu bem, e sim de necessidade. Faça o que for preciso, custe o que custar. Esse não era o lema deles, quando faziam experimentos em mim? Estou só colocando em prática!

Chego ao riachinho que cruza a clareira a trezentos metros da cidade, é nessa hora que eu deveria virar a esquerda e seguir o curso do riacho, até encontrar minha caverna de exploração, que eu usava como um depósito de peças, fios, painéis e coisas que eu poderia usar para construir alguma coisa que me fosse útil, como este purificador de água, que estou enchendo agora com a água do riacho. Eu o construí porque os normais são muito pequenos e deixam a água com um gosto horrível de plástico, este aqui tem capacidade para dois litros, e não tira toda a radiação da água, só o necessário que me permita beber e não morrer, além do fato de que este que eu fiz, deixa a água de qualquer lugar cristalina, e os comprados não tem essa capacidade já que foram feitos para tirar apenas a radiação da água deixando outras impurezas para trás.

Olho para o curso do riacho, e para a escuridão em seu caminho. Penso no quanto era complicado contornar a cidade, na outra montanha íngreme que eu teria que escalar, nos barrancos que teria que pular, nos perigos desnecessários que teria que correr. Tudo isso por um medo irracional e racional ao mesmo tempo, que meus pais usaram muito bem contra mim, o medo de machucar alguém que não merecia. O medo de ferir alguém novamente, como aconteceu com Ana Lia, minha primeira e única paixão, que morreu por culpa minha.

⎯  Não foi culpa sua Kiara, vocês eram apenas duas crianças – Liana fala descendo do meu ombro e indo lavar seus sapatinhos pretos sujos de sangue no riacho. Ela me conhece muito bem para saber em quem e o quê eu estou pensando.

⎯  Eu que a convenci a tirar a máscara de ar, mesmo sabendo que ela era normal. – Retruco iniciando novamente a discussão que venho tendo com ela, desde que contei o que aconteceu com Ana Lia.

⎯  Mas você não sabia que a área estava contaminada daquele jeito, como poderia saber? Você era apenas uma garotinha de 10 anos, não tinha nem noção do que estava fazendo.

⎯  Claro que eu tinha noção do que eu estava fazendo! Sou uma Céleto! Se ela não tivesse tirado a máscara para me beijar, não teria voltado para casa com os pulmões danificados, e também não teria morrido uma semana depois. – uma lágrima escorre pela minha bochecha.

⎯  E também não teria me entregado para você um dia antes, e você não teria me aprimorado, ou seja, eu seria apenas uma bonequinha de porcelana até hoje.

⎯  É verdade, mas...

⎯  Shiuuu – ela me interrompe e sobe novamente em meu ombro, limpando minhas lágrimas e me dando um beijo na testa. – não adianta pensar nisso agora, temos que chegar à casa da vovó.

Começo a caminhar novamente, dessa vez, em direção à cidade. Olho para o céu e vejo as estrelas pontilhando a escuridão, ouço sua doce voz em minha mente como se fosse um sussurro fraco: “Cuide de Liana para mim, meu amor”

Encontro a estrela mais bonita e brilhante, e a encaro com toda minha intensidade. “Eu estou cuidando Ana Lia, estou fazendo o melhor que posso...”

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